terça-feira, 9 de junho de 2009

Conto: Olhos Vermelhos

Era apenas mais uma noite.

Uma noite um tanto quanto sombria, é verdade, mas apenas uma noite.

A lua cheia ia alto no céu escondendo-se atrás de um véu de nuvens cinzentas e, por vezes, revelando por completo sua face mortiça. Sombras e vultos brincavam de esconde-esconde pelos cantos dos olhos dos pouquíssimos passantes. O bafo gélido da noite recebia àqueles que a desafiavam com um beijo cortante.

- “Calma menina, é só a madrugada que está um pouco fria”... – pensou Priscila imediatamente começando a cantar tentando fazer com que o som da própria voz lhe acalmasse os nervos.

Tudo em vão: o vento assobiava em seus ouvidos canções doentias demais para que ela conseguisse controlar-se.

Apertando o passo em direção à “pensão familiar” onde dormia, a prostitua tentava pensar na mãe e nos irmãos do interior que dependiam dos poucos tostões que conseguia dos clientes na Praça Rio Branco. Não crescera para isso – o meretrício não fora seu alvo ao desembarcar há dois anos na rodoviária da capital – fora sua única opção. Seu pai havia morrido e cinco crianças dependiam dela agora, ou seja, Priscila não podia dar-se ao luxo de escolher o que fazer, se ninguém havia aceitado seus préstimos como empregada, paciência.

Como não era especialmente bonita, nem inteligente, o que lhe restara era tentar ocupar um espaço naquela maldita praça desde as nove horas da noite fazendo pequenos programas com quem quisesse pagar-lhe, pelo menos, cinco reais. Alguns clientes fixos ela conseguira, mas estes lhe rendiam pouco por semana. A maior parte de seu dinheiro vinha daqueles desconhecidos – cinco ou seis por noite – que ela levava para um passeio de, no máximo, quarenta minutos em sua cama. Homens dos quais ela mal conseguia lembrar-se do rosto, ou se eram bons, maus ou tristes – eram apenas seus clientes – iam e vinham ao sabor da ocasião.

Mas, de seus irmãos e de sua mãe ela se lembrava – de fato, não os esquecia jamais. Era em suas expressões, em seu riso e em seu choro que ela pensava quando alguém a possuía com maior brutalidade magoando-lhe a carne surrada levando-a, às vezes, a sangramentos advindos de feridas doloridas que, ainda assim deveriam ser ignoradas no exercício de sua profissão, pelo bem dos seus. Seus pequenos eram a única motivação que a levava dia após dia a atravessar ruas escuras e perigosas com roupas mínimas atrás de homens com pouco dinheiro e muitas perversões, mesmo em uma noite tão sombria.

Toc, tic, toc – era o som de seus saltos gastos batendo contra as pedras da calçada. Toc, toc, toc sons de outros passos misturam-se aos seus e parecem ecoar com a força de batidas em um sonoro tambor no silêncio frio da noite. Ela decidira ficar até um pouco mais tarde com um coitado que lhe oferecera quinze reais pela realização de uma fantasia obscura e dolorosa – para ele, não para ela. “Jamais entenderei essas pobres criaturas”.

Agora, ao voltar do programa que se desenrolara em um hotelzinho próximo à escola Silviano Brandão, encontrara essa noite aziaga enquanto solitariamente dirigia-se para o local onde passava a noite – um pardieiro na virada do viaduto onde se ela não tomasse cuidado, quem passava nos carros do lado de fora veria sua intimidade naquele quartinho fétido onde ela tinha seus únicos momentos de privacidade.

Priscila apertara seus passos – sua função estava encerrada por hoje, mas os outros passos insistiam em acompanhar os seus. Ela pára e vira-se repentinamente já com uma resposta ferina nos lábios para dar àquele que, com certeza, queria ser seu último cliente, mas, ninguém estava lá. Apenas a calçada, a rua Itapecerica deserta, lojas fechadas. Maria Aparecida – seu nome de batismo, Priscila era apenas o nome de guerra – aperta instintivamente a navalha que sempre trás enfiado no sutiã, entre os seios.

- “Não é nada, menina, é só essa noite maluca mexendo com você”. – disse ela voltando a andar.

Toc-tocs mais apressados fazem-se ouvir no silêncio macabro da noite fria e a entrada da passarela que liga o bairro São Cristóvão ao centro já é visível em meio à penumbra causada por algumas lâmpadas queimadas nos postes próximos. Priscila quase corria.

O som do salto de sua bota batendo contra o concreto frio parece agora mais seco e menos assustador. Ela atravessa a passarela escura e fétida apressadamente enquanto um gato preto lambe languidamente os últimos resquícios de sua deliciosa refeição morna e ensangüentada das patas e a lua mostra claramente sua face esbranquiçada.

Subitamente, um estalido contra o chão. O gato que deliciosamente lambia suas patinhas pretas pula num salto suicida para o lado de fora da mureta emitindo um som aterrorizante. Um predador dominante acabava de iniciar sua caçada fazendo ressoar no silêncio suas passadas inumanas.

A jovem meretriz – ela tinha apenas dezenove anos – sente o sangue gelar e um frio característico subindo-lhe a espinha até o centro do cérebro. Seu instinto de preservação aguçado dia a dia naquela vida incerta aprendera a emitir-lhe sinais bem claros em situações de perigo.

Ela começa a correr desabaladamente. Lembrava-se muito bem das histórias da vó Lica sobre as criaturas que andavam livremente em noites como aquela atrás de vítimas para saciar sua sanguinolência implacável. Imagens do grande porco/homem contadas por sua avó vinham a sua mente, enquanto ela, sem perceber gritava os nomes dos santos dos quais se lembrava para afastar a possível “visagem” – mas não olhava para trás. Não ousava olhar para trás.

Súbito, os passos pesados param... Priscila nem nota... O vento cortante assobia mais forte... “Será que essa passarela não tem fim?”... A lua brilha mais intensamente no céu... Um ganido gutural e assustador corta a noite... “Alguém me ajude!”... O beijo da noite torna-se então, ainda mais gelado... Duas pernas doem beirando a exaustão... “Eu preciso continuar!”...

Priscila, no ápice da exaustão e do horror começa a pensar que é seu fim – “o que vai ser dos meus irmãozinhos?” – quando, finalmente, um vulto humano surge à sua frente – possivelmente um homem. A prostitua sente a esperança começar a renascer e, num súbito esforço, faz com que as forças voltem ás suas pernas já amolecidas pela explosão iniciada pelo pânico. Novo impulso é dado ao seu corpo, enquanto a sombra humana se aproxima mais e mais.

Exausta, aterrorizada, mas finalmente sentindo-se segura, a mulher finalmente cai desmaiada nos braços do desconhecido que sorri, sinistramente, do fundo de seus olhos vermelhos.

Nenhum comentário:

 
BlogBlogs.Com.Br