terça-feira, 9 de junho de 2009

Conto: Ele

Publicado como participação especial no jornal "Conhece-te a Ti Mesmo". Publicado na edição 98/2009

“De novo não... Desta vez eu não vou”.– Pensei firmemente tentando tirar da mente a minha obrigação de todas as semanas. “Não e não” – disse para mim mesmo mais uma vez.

Mas era incontrolável. O senso de dever me obrigava a partir e simplesmente fazer o que tinha que ser feito. “Mas como? Que senso de dever? Ninguém deveria ter uma obrigação como esta!” Mas a obrigação era minha e eu não tinha como escapar. “Mas não, não quero mais... Ninguém vai me obrigar a isto!” Mas, lá dentro eu tinha certeza de que Ele podia. Por Ele eu faria tudo. Eu não agüentaria aqueles olhos vermelhos me perscrutando e dizendo que se eu não cumprisse a minha parte do acordo ele se cumpriria em mim... O que isto quer dizer? Eu, até hoje, não ousei descobrir.

Pois é. Ele sempre me ameaçava. Ás vezes eu já tinha até pensado que era melhor eu deixar-Lo fazer comigo o que quisesse. Você sabe, a dor na consciência é a pior das dores – e a minha está doendo tanto que tem dias em que eu não consigo nem dormir. E nos dias em que durmo os rostos delas vêm me visitar e cobrar o destino que eu lhes dei: demoradamente doloroso e triste. “É verdade, é verdade – eu sei que eu demoraria só uma semana para morrer e que Ele devoraria aos poucos minha carne começando da pele até chegar ao esqueleto e que depois eu teria o descanso eterno...” Descanso eterno – esta expressão sempre me incomodou: como o padre podia ter tanta certeza? Ele mesmo nunca tinha estado lá! Mas se bem que depois de tantos anos uma semana de sofrimento não apagaria os meus pecados. Tenho quase certeza que se eu deixasse que Ele fizesse aquilo comigo eu queimaria no canto mais quente do inferno com Belzebu em pessoa me torturando pela eternidade. Mas, pensando bem, isto eu poderia suportar... O que eu não suportaria é desagrada-Lo – isto sim seria o fim.

“Aí, ta vendo! Voltamos ao mesmo lugar! Para não desagrada-Lo eu tenho que cumprir meu acordo. Tá bom, quem vai ser desta vez? Ah, é... Ele já tinha até escolhido a moça: era aquela do banco – a loira de cabelos compridos, olhos verdes e lábios vermelhos. É, eu tinha que reconhecer que o desgraçado tinha bom gosto.” Todas elas eram realmente princesas. Mas ele era assim: apenas as melhores teriam o privilégio de se tornarem as Princesas Ocultas e ter os seus rostos enfeitando a parede da Sala das Ocultas. Tá, tá certo que ninguém podia ir àquele quarto a não ser Ele e eu. Mesmo assim, eu só tinha permissão de entrar lá quando ia levar os novos rostos para compor o mural. E era lindo! Cada uma das princesas que eu havia atraído e trazido para aquela casa tinha o seu lugar para ser amada e adorada para sempre. É claro que elas gostavam: quem não gostaria de ser adorado? É, é claro que elas demoravam um pouco a serem convencidas: na verdade elas só diziam que sim quando paravam de gritar. E como elas gritavam - mas a dor purifica. E elas, no final ficavam tão puras que tenho certeza que as alminhas delas estavam lá no paraíso.

Mas, se elas estavam no paraíso, por que apareciam como pavorosos diabos em meus pesadelos? Lá elas me perseguiam como corvos agourentos gritando que eu era o culpado – eu tentava explicar que a culpa não era minha era Ele! Só Ele era o culpado! Ele me obrigava a atrair as pobres moças e Ele as fazia gritar. Ele! Ele! Não eu. Mas eu acho que elas me confundiam com Ele porque Ele se parecia muito comigo – coisas do sangue, é claro. Mas nós não éramos a mesma pessoa apesar de até eu mesmo duvidar disto de vez em quando.

Mas hoje eu estava decidido a parar, eu ia falar. Ia gritar se preciso! “Não vou mais trazer ninguém! Se você quiser mais Princesas saia daí e vá buscar você mesmo!” – Ah, ele vai ver comigo. Eu vou sair daquela casa e nunca mais vou aparecer.

E pisando com passos duros Eu seguia pela rua indo se encontrar com Ele. Quem o via na rua diria que se tratava de um homem jovem, de aparência forte e de feições hora decididas, hora tomadas pelo medo, hora tomadas por prazer. Eu parecia não se importar com nada nem com ninguém. Parecia ter um objetivo - seus olhos eram os que denunciavam tal decisão: duros, frios na maior parte do tempo. Mas, Eu era muito bonito. Poderia ser um sucesso com as mulheres.

Biiiiiiiiiiiii – quase atropelado! Sua decisão era tanta que Eu nem tinha olhado o sinal da avenida mais movimentada da cidade. Em um ágil salto ele se pôs novamente na calçada e cambaleou.
- O senhor está bem? – Era morena, jovem, grandes peitos e um lindo nariz – o
mural ficaria contente... – O senhor quer que eu ligue para alguém?
- Não, não. Acho que foi o sol. Já estou melhor. – “Ah, não. Eu aqui decidido a
não fazer mais isto e ela aparece – só pode ser um sinal... Mas de Deus ou do Diabo?”... Não, não posso mais pensar nisto. Nem vou falar com Ele que a vi. Meu assunto com Ele hoje são algumas boas verdades que vou lhe lançar na cara, ah, isto sim!.. Mas, se bem que não tem problema se eu a ficar olhando... Só saber onde ela trabalha, ou mora... Tão bonita, tão educada!

Ah, então é ali... Na livraria... Ela deve ser culta... Ia ficar bem ao lado da jornalista... Não, não e não! Não vou pensar nisto... Não posso me desviar do meu objetivo. Tenho que ir para o sítio agora e encara-Lo enquanto ainda tenho vontade e força suficiente para isto.


“Ei, onde você está? APAREÇA!” Ele já sabe o que eu vim fazer aqui... Ele sempre sabe tudo o que eu penso... Não é possível que Ele não vai aparecer logo hoje... “APAREÇA, DESGRAÇADO! A GENTE TEM QUE CONVERSAR!” Não, assim não ficou bom, submisso demais: o que Eu sou? Uma tia velha? “APAREÇA, DESGRAÇADO! EU TENHO QUE TE FALAR UMAS COISAS!” Melhorou. Mas será que Ele vai ficar ofendido? Será que Ele vai ficar nervoso comigo? Não... Pensamento errado... Tenho que ficar calmo e me concentrar... Não posso deixar Ele me convencer e muito menos posso contar para Ele da morena da livraria.

“Quem?”

“Ai, Cristo”...Ele ouviu meu pensamento de novo! Ou será que eu é que falei alto e nem percebi? “Ninguém”!

“Eu ouvi perfeitamente você falando de uma morena linda e culta que ficaria bem ao lado da jornalista” Ai, aquela voz me matava. Melodiosa e ao mesmo tempo firme e cortante como uma lâmina. Mas eu tenho que ser firme!

“A-HA! Não falei nada de jornalista!” Ou será que falei? Já não tenho certeza! Como eu posso ser tão burro?

“Mas o que importa se falou ou não? Eu sei. Eu sei de tudo, seu idiota! Você esqueceu que eu te conheço melhor que você mesmo?”

Ai, não... Não posso deixar que Ele domine a conversa. Tenho que falar alguma coisa... “Eu vim dizer...”

“Dizer o quê, seu lixo?”

“Não fala assim comigo! Eu sempre fiz tudo o que você mandou!”

“Agora sim é o meu amigo de sempre... Aquele que faz T-U-D-O o que eu mando... Você sabe que é especial para mim, não sabe? Você sabe que me ama e que eu te amo, não sabe?”

“Não é disto que eu vim falar! Eu vou embora!” Ah, não... Os olhos dEle estão ficando vermelhos... Aquela sombra está novamente cobrindo o rosto dEle... Ah, não... Ele está entrando no quarto... Tenho que correr! De novo não!... Mas minhas pernas estão presas no chão...Não consigo movê-las! Tenho que ir... Tenho que fugir!! Mas estas pernas desgraçadas não me obedecem!

“Você sabe que eu não gosto que você seja malcriado, não é?”

Ai, quando Ele começa a falar assim eu sinto aquele líquido quente descendo do meio das minhas pernas. “Não, claro que não é mijo! Só um covarde mijaria assim!” “O que é, então? É isto que você está me perguntando? Não te interessa”!

“Você sabe que eu não gosto que você seja malcriado, não é? Meninos malcriados têm que receber o castigo, você sabe?”

E a próxima coisa que eu ouvi foi o barulho do couro rasgando as minhas costas e um grito de dor. Mas este grito não era meu. Na verdade eu nem sei o que estava acontecendo ali.
A próxima coisa de que me lembro era de um restaurante, música romântica, uma linda loira: parecia um anjo. Um pó na bebida – muito leve só para atordoar porque Ele gostava que elas estivessem bem atentas na hora da purificação. O carro, a estrada, a porteira, a casa, a porta e Ele.

Maravilhoso era Ele – meu pai, meu irmão, meu amigo, meu Deus. Vestido com sua roupa branca alvíssima e sua capa negra e vermelha um sorriso nos lábios e uma adaga-ritual nas mãos.

“Quem adentra meus domínios?”

“Um pobre servo que te traz um tributo”.

“Pão e vinho?”

“Sim, puro pão e puríssimo vinho”...

Gritos! Gritos! Ah, não consigo dormir! Por que Ele me obriga a isto?



“Mas eu não posso mais... Por que, meu Deus? Por quê?” Era quase tudo o que as árvores do bosque negro e denso podiam ouvir – É... As árvores têm ouvidos sabe? Principalmente os Salgueiros e os Carvalhos como aqueles que a mãe da minha bisavó tinha trazido da Sagrada Bretanha.

Além disto, havia também o choro convulso de um belo rapaz sobre um pequeno túmulo no meio das velhas árvores onde se podia ler sobre a pedra: “Aqui dorme J. S. C., filho de A.S.C., herdeiro legítimo da Adaga, irmão gêmeo de P.S.C. que ainda vive e muito viverá para servir e obedecer e cumprir”.


... Está feito: mais um rosto para pendurar na sala... O lugar vago perto da jornalista logo será ocupado também. Só para Ele.

“Ou seria para mim?”

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