terça-feira, 14 de julho de 2009

Artigo: A Descoberta do Mundo Clariceano

Publicado no jornal "Conhece-te a ti mesmo", 101ª edição.

Neste último mês reli um livro que há tempos estava guardado na minha estante: A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector. Reli ainda com mais carinho que o normal já que minha edição foi presente de meu eterno professor e também amigo Paulo Antunes.

Este livro reúne as crônicas de Clarice para o Jornal do Brasil no período de 1967 a 1973 organizadas por Marlene Gomes Mendes. Seu título é homônimo a uma das crônicas, onde Clarice comenta como descobriu o sexo aos treze anos, em conversa com uma amiga a quem confessa que andara fingindo e que, na verdade, não sabia de que forma um homem e uma mulher se unem. Vê-se traumatizada pela forma como tudo lhe é explicado, mas encerra esta crônica deixando claro que a lição aprendida é que a “vida é bonita”.

Para que se compreenda a amplitude destes escritos, assim como sua interpenetração em diversos gêneros textuais, é interessante que se compreendam o que são crônicas. Estas são textos, que, normalmente, partindo de um fato, acontecimento real ou fictício servem de veículo para que o escritor, chamado de cronista, posicione-se e explicite sua forma particular de ver e apreender o mundo (ANTUNES, 2005). Observa-se, portanto, que o cronista se revela, já que é sua visão pessoal que norteia a tessitura do texto.

Sendo assim, Clarice, aos poucos, expõe-se mais e mais em seus escritos semanais.

Para quem admira a escritora e sabe de sua notória aversão à exposição de sua intimidade, vê em A Descoberta do Mundo um achado, já que é possível saber mais desta autora e de sua intensidade interior. Desta forma, a leitura desenvolve-se com um prazer quase voyeurístico, já que se tem, em determinados pontos da leitura, a impressão de que se lê um diário.

Não que a autora escrevesse em tom meramente confessional – porém, conforme ela mesma notou e comentou em algumas das crônicas, era impossível que ela resistisse à tentação de se abrir e contar de si, de seus sentimentos, inseguranças, medos e alegrias.

Convém acrescentar, porém, que, mesmo que os escritos de Clarice para o Jornal do Brasil sejam genericamente classificados de crônicas, eles não se resumem a isto apenas, uma vez que, além dos comentários sobre fatos, ela ainda permeia seus escritos com pequenas doses de ficção como em Calor Humano. Ali, em vez de uma crônica tradicional, vê-se uma historieta sobre uma mulher que está triste à espera de “um algo” que nem mesmo ela sabe precisar.

Considerando-se as revelações de si permeadas por pequenas doses de ficção, ainda é possível que se entenda um pouco mais como o eu da autora salpica suas narrativas: é o que acontece com A descoberta do mundo e A perseguida feliz. Na primeira, como mencionado, a autora fala de uma experiência que viveu ainda adolescente. Na segunda, a pessoa ficcional comenta exatamente as mesmas sensações pelas quais Clarice afirmou ter passado – ela faz uso, inclusive de palavras e construções semelhantes em ambos os textos. Como disse Clarice: “Narrar é narrar-se”.

Ainda, em outras semanas, Clarice “fala” com seus amigos, dirigindo-se diretamente a eles, muitas vezes por nome ou pelas suas iniciais. “Fala” com seus leitores e até mesmo publica uma carta de Fernanda Montenegro que se queixa da violência e da repressão contra a classe artística.

Há, em acréscimo, outro detalhe que, para mim, é dos mais deliciosos: através de crônicas é possível que se “reconstrua”, como em um quebra-cabeça, um retrato da época da escrita dos textos, pois, o cronista comenta muitos fatos fornecendo-nos suas impressões - a de uma testemunha ocular.

Assim, por Clarice, somos informados da dificuldade de estudantes ingressarem na faculdade pela falta de vagas, das passeatas de protesto contra este fato, do advento do cérebro eletrônico, da questão indígena, da necessidade de reforma agrária. Impressionante como determinados problemas permanecem os mesmos.

Tocante ainda a forma como ela refere-se à saudade que sente de Lúcio Cardoso: seu amigo, mentor e, segundo suspeita-se, seu amor platônico. Há uma crônica que tem o nome deste autor onde ela fala de seus sentimentos por ele até mesmo dizendo que “se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado”. Esta impossibilidade remete-se, provavelmente, à homossexualidade de Lúcio.

Destarte, A descoberta do mundo, devido às suas diversas características e abrangência, é um livro muito interessante para os que amam Clarice e para os que não a amam (odiar não é de fato uma possibilidade, neste caso). Serve, pelos mencionados motivos, até mesmo de porta de entrada para o universo clariceano para aqueles que ainda não tiveram o prazer de se deleitar com sua obra.

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