terça-feira, 7 de julho de 2009

Conto: O Matador de Mulheres

Cansada do trabalho noturno, enfadonho e extenuante, ela só pensa em descansar. Seu corpo relaxado e totalmente envolto na água morna da banheira está tendo o descanso merecido. Não sei se poderia ser chamado de “descanso dos justos” naquela situação em particular – mulheres como ela jamais seriam chamadas de justas, não é?

Tudo bem que ela não fosse mesmo um modelo de castidade e santidade, mas trabalho é trabalho e o cansaço é o mesmo para qualquer mortal que se dedique a alguma tarefa. Só sei que seu corpo maltratado estava tendo o que merecia: paz e tranqüilidade.

E eu ali, observando... Observando sem ser notada, sentada em uma poltrona rota e desbotada no canto da sala, mas podendo ver claramente pela fresta entreaberta da porta do banheiro. Não era exatamente uma mulher linda ou jovem. Era apenas alguém comum, que certamente passaria despercebido em meio à multidão. Mas eu estava ali e era noite. Noite escura e cheia de presságios. As sombras bruxuleavam ante a luz da lua cheia formando fantasmas esquisitos e às vezes engraçados por todos os cantos.

Só me pergunto se seriam mesmo sombras...

De qualquer forma eu estava ali, sentada e observando. Mas por que, me pergunto: por quê eu e por que ali? Por que naquele cubículo escuro e sombrio abarrotado de móveis de péssimo gosto já envelhecidos – certamente adquiridos em algum brechó – em meio àquela fumaça fedorenta de cigarros baratos que vinha ainda quente de dentro dos cinzeiros lotados espalhados pela minúscula sala? O quê, em nome de Deus eu estava fazendo ali?

Eu estava ali para observar... Observar as sombras da noite que brincavam aos meus pés. Curioso como uma delas ia avolumando-se calmamente enquanto o tic - tac do relógio falava consigo mesmo da parede da cozinha. E a Sombra crescia e tomava preguiçosamente forma de homem: e era de um negro tal que eu não consigo vê-la novamente nem mesmo quando fecho meus olhos na total escuridão da noite. Quem era ela? Sombra maldita vinda das profundezas abissais! O quê quereria aqui em meio a simples mortais?

Ignoro. Apenas sinto.

Eu sinto e é uma dor imensa que me corta o peito como se afiada faca me perfurasse as carnes arrancando-me pungente grito de dor. “O que você quer sombra? Fale comigo!” Mas como resposta obtenho apenas o silêncio sepulcral que permeia a penumbra melancólica e lasciva que envolve a sala.

Propósitos nobres não terá certamente tal espírito maligno que caminha entre as sombras da noite tão silenciosamente quanto um espectro amaldiçoado. Mas o que faço eu ali? Por que tenho que observar os feitos de tal ser?

Tomo uma decisão: abro a boca para emitir um brado de aviso para aquela que inocentemente dorme absolutamente relaxada na banheira. Mas a voz não me sai. O grito pára no meio da garganta como se capturado fosse por redes invisíveis. Apenas me é permitido observar.

O sangue está gelado em minhas veias. A Sombra assume contorno humano e passa a movimentar-se silenciosamente em direção ao banheiro, pé ante pé. Há um brilho em suas mãos – algo reflete a luz pálida e mortiça da lua cheia! Tento novamente gritar ao perceber que aquele era o brilho emitido por enorme lâmina afiada e fria e que aquela sombra não era nada além de um famigerado carrasco em busca de sua nova vítima.

Ao perceber que estou fadada a observar a morte de outro ser, tão humano quanto eu, o desespero me enevoa a visão e a alma. Quero me levantar, mas não consigo: poderosas garras infernais me prendem ao sofá. Por mais que eu me debata tentando soltar meu corpo das mãos ancestrais que me enlaçam o espírito, não consigo! Estou presa! Quero gritar, quero morrer, mas nada me é permitido: posso apenas observar. Mas POR QUÊ?

Tento buscar nos recôndidos de minha mente o motivo de tal tortura malévola e...

-AGORA ME LEMBRO! É claro! Este era apenas um sonho: pesadelo maldito do qual eu não poderia sair sem ver o final. Mas e o último domingo? Nada demais aconteceu! Meras coincidências do destino, claro! O quê mais seriam? Daqui a pouco eu vou acordar, eu sei...

Mas as lembranças daquele dia me são muito marcantes... Seriam mesmo fatos corriqueiros? Chego a duvidar da minha própria mente e de minhas lembranças.

Rememorando aqueles acontecimentos é como se eu estivesse lá novamente, naquele dia já passado, vendo tudo acontecer como em um flashback: quando abri a porta e peguei o jornal logo cedo, nas primeiras horas da manhã, mal pude acreditar na manchete de capa: “EXCLUSIVO: Matador de Mulheres Faz sua Décima Vítima”. Li avidamente a reportagem onde era descrito pelo tablóide como uma fonte na polícia havia deixado vazar que havia um serial-killer em ação matando e dilacerando mulheres que viviam na dita zona boêmia da cidade. E para pavor dos pavores, ele comia seus corações!

O nojo me atacou e a golfada de vômito subiu rasgando minha garganta. Era este o meu pesadelo! Por dez noites eu havia sonhado com isto: uma sombra que se movia esguia e silenciosamente por cômodos nauseabundos até encontrar sua vítima. - E eu ali, tão presente quanto o próprio dilacerador, tendo que observar. - Quando a encontrava, sempre no meio do banho ou jogada sobre a cama em sono profundo, natural ou causado por drogas quaisquer, ele as partia com sua faca. – E eu ali tendo que observar.- Ele enfiava sua lâmina solene e vagarosamente parecendo executar algum sombrio ritual enquanto a vítima se debatia de dor e desespero, mas imobilizada, apenas podia sangrar até a morte. E ele sorria, meu Pai, eu juro por Deus que ele sorria! E eu senti! Em meu pesadelo eu pude sentir! Era como se fôssemos três seres distintos que pelas conspirações do Universo Imperfeito estavam unidos apenas em um: a Vítima, o Assassino e a Testemunha. Éramos três sentimentos absolutos, mas únicos e em comunhão: a dor da Vítima, o prazer do Assassino e o desespero da Testemunha – éramos a pirâmide iníqua, todas as faces do terror em um inigualável e inexplicável ser. E eu sei que cada um de nós sentiu os três sentimentos em seu coração na temida hora fatal.
Quando eu observava a sombra e percebia pela lâmina em punho quais eram suas intenções, meu desespero era indescritível: a vontade de gritar, de me mover de fazer algo, sei lá! E a impotência total quando percebia que poderia apenas observar. Eu não conseguia desviar meus olhos na esperança de que algo pudesse por fim àquela máquina assassina que apenas pensava na carne quente e deliciosa do coração de suas vítimas e no gosto ferruginoso do sangue ainda borbulhante dentro dele.

E era horrível o pavor que me assolava ao ver a vítima ressonar inocentemente em meus sonhos até que o assassino perfurava-lhes as carnes dolentes e enfiava-lhes a faca medonha. Por que neste momento, todo o medo se dissipava e... Eu era o Assassino! Era total o meu prazer sentindo o aço afiadíssimo tocar-lhes a pele lânguida e sensual acariciando-lhes como se o motivo de sua presença ali fosse a vida e não a morte. Até que num movimento rápido e preciso, qual açougueiro abatendo um animal qualquer, eu perfurava-lhes a carne, rasgando a pele e demais tecidos com uma fome de eras passadas. Quando e Vítima ameaçava gritar e começava a se debater – era a Glória e a Redenção: seu sangue e sua dor lavariam os pecados meus e delas. Mas eu, cuidadosamente, havia enfiado a faca entre a quarta e a quinta costela perfurando-lhes em cheio o pulmão. Tentar gritar era impossível: seus órgãos dilacerados jamais emitiriam sequer um ruído. Quando o instrumento havia penetrado até o cabo, senti o gozo do Assassino, que foi o meu gozo, seu prazer indescritível ao tomar o bem mais precioso de sua Vítima: a vida. E o prazer era enorme.

E ali, naquele momento, era como se eu novamente trocasse de corpo e a dor... Ah... Mal posso acreditar em tamanha dor! Eu era a vítima sentindo a arma desconhecida penetrar fria e precisamente meu corpo indefeso e nu. Era insuportável! Ah... O terror, a certeza da morte e a impotência frente a poderoso algoz. Ah... dor, dor enquanto a arma atingia pungente meu centro vital e a vida esvaindo-se junto com a vontade de lutar e então, nada... Nada mais...

Novamente como a Testemunha, tinha que olhar apalermada e impotente enquanto o Assassino cortava as carnes e abria o peito da Vítima freneticamente procurando seu coração encontrando-o ainda quente para devorá-lo logo em seguida. Neste momento, eu mordia minha língua com toda força. A visão era tão repugnante e o sentimento de impotência tão latente que eu tinha, simplesmente tinha que fazer algo para me tirar daquele pesadelo eterno. A dor da mordida sempre funcionava e eu acordava suada e cansada, em minha própria cama e com um gosto inconfundível de sangue entre os dentes.

Era o fim do meu tormento, até a próxima vez. Pesadelo indescritível e aterrorizador.

Pelo menos foi o que pensei até ler aquele bendito jornal.

Na reportagem, bem ali, frente aos meus olhos vi os retratos daquelas que eu apenas havia conhecido em meus sonhos: a ruiva de cabelos longos, a morena gorda e desajeitada, todas. Desmaiei. Era insuportável aquela sensação: eu sentia a loucura ameaçando-me os sentidos.

Quando acordei, estirada no meio da sala qual pano velho e inútil, fiz questão de esquecer. Meras coincidências pensei. Como poderia ser? Impossível! Há, pensa bem? Eu, algum tipo de profiler. Impossível. Apenas pesadelos. Deveria lembrar-me de contá-los ao meu psiquiatra na próxima sessão. E era tudo: vida normal, trabalho, casa, sono e a rotina retomada no dia seguinte. Abençoada rotina que me fazia esquecer meus temores!

Continuei minha vida como pude, e conseguia ignorar as notícias do jornal e não pensar mais no assunto, exceto quando eu sonhava acordada com aquelas mesmas visões.

Mas agora de novo! Mal posso suportar! Eu ali, presa naquela poltrona, sabendo que tudo iria se repetir e eu não poderia fazer NADA além de observar. Amanhã eu sei que não suportaria mais a vida. Sei que não ficaria normal: seria provavelmente internada em um asilo de loucos pelo resto de minha existência, ou me jogaria do alto do maior edifício que encontrasse. Era insuportável saber que alguém morreria ali, na minha frente e eu não poderia sequer chorar.

Novamente tento gritar e nada. Tento me mover e nada. NADA! Apenas posso observar o Assassino, demônio enlouquecido e feroz, que avança qual gato sorrateiro em direção ao pobre ratinho indefeso.

A tensão era palpável: como ela podia não sentir? Era como se o menor movimento de quem quer que fosse pudesse causar um terremoto dentro daquele cubículo.

Mas desta vez, o gato foi surpreendido! Não era um ratinho indefeso que o esperava, mas sim uma leoa parida pronta a defender seu pequeno tesouro! Subitamente, como que avisada por um grito inaudível, a mulher abre os olhos e percebe o Assassino quando ele cruza a soleira da porta. Em um movimento inexplicável, típico daqueles que são obrigados a lutar dia a dia pela própria existência ela lança mão do seu secador e o arremessa com toda a força de seu braço forte contra a Sombra e o acerta em cheio na testa.

O Aniquilador estava perdido... Como poderia ser? Habituado as vítimas dolentes e que não eram capazes de resistir ele ficou perdido por uma fração de segundo. Ele havia vindo ali para ferir e não para ser ferido! Para derramar sangue alheio e não para ter o próprio derramado!

Assolado pela surpresa o assassino foge qual cão covarde, com o rabo entre as pernas segurando a testa e sentindo pungente dor.

Quanto a mim, mal pude conter a felicidade. Alegria, alegria! Eu não teria mais uma alma a me perseguir! Ela vivia! E viveria ainda mais mesmo que para levar uma vida perdida e sem futuro, mas ela vivia! O Assassino foi frustrado! Ah, menos uma agulha a me ferroar a consciência...

Acordei pela manhã cansada e não suficientemente refeita. O sono permeado de pesadelos não me dava o descanso necessário, mas pelo menos desta vez, o final foi feliz! Alegria maior! Graças... Mas esta dor de cabeça está me matando. Também, depois de uma série de noites destas! Fora os dias terríveis de incertezas depois das noites... “Onde estariam minhas aspirinas?” Levo a mão à cabeça em um gesto típico de desconforto e...

Não! Não poderia ser! Eu não acredito! Corri para o banheiro e horrorizada pude contemplar: sobre a minha testa um enorme e protuberante galo circundado por um emaranhado de cabelos emplastados pelo meu próprio sangue iniquamente derramado na noite passada.

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