terça-feira, 14 de julho de 2009

Crônica: Nunca matei ninguém

Publicado como reportagem de capa no jornal "Conhece-te a ti mesmo", 101ª edição.

Há oito anos aconteceu em Ouro Preto um assassinato que deixou a opinião pública chocada: uma jovem recebeu dezessete facadas em um cemitério local durante uma sessão de jogo de RPG (Role-play game). Este assassinato foi novamente notícia devido ao fatídico aniversário ainda sem culpados condenados.

Acompanhei, como muitos, o noticiário pela TV, à época da morte, chocada com a crueldade dos assassinos que durante uma espécie de ritual mataram Aline, cujo corpo foi abandonado sobre túmulos.

É, de fato, estarrecedor quão cruéis crianças, jovens ou adultos podem ser. Lembram-me famosa frase de Thomas Hobbes que, dia a dia, encontra novos e ampliados sentidos: “o homem é o lobo do homem”.

Quando do assassinato, as notícias sobre a jovem em Ouro Preto chamaram-me, em especial, a atenção devido ao destaque dado ao RPG como fomentador e formador de assassinos. Viam-se em todos os telejornais – respeitáveis ou não – livros e dados utilizados no mencionado jogo encontrado na casa de um dos rapazes suspeito do crime aviltante.

Tal destaque a este material provocou reações fortes de pais de meus alunos e da vizinhança: todos proibiram seus filhos de envolverem-se com este famigerado jogo que produz assassinos cruéis.

Para mim, foi inevitável a lembrança de meus tempos de adolescente quando eu mesma fui apresentada ao RPG. Eu ainda estudava e alguns de meus amigos conseguiram exemplares importados (que xerocaram) dos livros do Jogador e dos Monstros do AD&D (Advanced Dungeons and Dragons). Como eu já falava inglês (idioma em que se encontravam os livros) fui convidada a traduzir trechos específicos e, posteriormente, integrar o grupo. Nesta época, eu era uma das pouquíssimas mulheres que jogavam.

Começamos a conversar sobre o jogo e, ao ouvir nossas conversas que envolviam feitiços, batalhas, criaturas mágicas em uma ambientação medieval, os sinais de alerta na cabeça dos meus pais ligaram-se e, quase fui proibida de jogar. Como meio termo, eles exigiram que algumas sessões – pois assim se chamam as partidas – se desenvolvessem em nossa casa. Isto lhes mostrou que o jogo se tratava de algo deveras inofensivo.

Desde então, continuo jogando RPG, tendo conhecido inúmeros jogos além do D&D (em sua nova edição o AD&D reassumiu seu nome original Dungeons and Dragons). Passaram-se dezesseis anos e, certamente, posso afirmar com toda a convicção, que jamais matei alguém – nem com requintes de crueldade, nem sem.

Ora, mesmo que tal afirmação pareça absurda, considerando-se que há mais de década e meia tenho contato com este famigerado jogo, posso exibir minha ficha policial absolutamente limpa como prova de que jamais cometi crime algum. Pelo contrário – possuo uma vida absolutamente normal e ainda, junto com demais colegas educadores, sou corresponsável pela formação de jovens, já que sou professora.

!!!!!!!

Neste momento, faço uma pausa em respeito às expressões de surpresa que porventura tenham surgido nos rostos de leitores incautos.

Posso afirmar como jogadora experiente e mestre de alguns sistemas (o que significa que eu gosto de inventar as estórias ao longo das quais meus amigos se divertirão) que a crença segundo a qual o RPG é nocivo é absolutamente infundada. Na verdade, ela apenas prova o que qualquer pessoa de bom senso já sabe: se você engole o que vê na TV ou lê sem se dar ao mínimo trabalho de pesquisar a fundamentação da coisa vista ou lida, pode estar baseando suas idéias em inverdades.

Quem pesquisar o RPG, seu surgimento e desenvolvimento, verá que ele nada mais é que um jogo de estratégias, como o xadrez, onde, em sua imaginação, os jogadores – como os atores de teatro em uma peça onde o enredo seja desenvolvido tendo como base a improvisação – interpretam outras pessoas. Quem eles serão depende do sistema escolhido pelo grupo e do gosto pessoal de cada um: pode-se ser de Pernalonga a Superman passando pelo Exterminador do Futuro, Conan, o Bárbaro ou Merlin, o mago.

Na maior parte do tempo, a ação acontece apenas dentro da cabeça dos jogadores e do mestre – que é quem fornece o fio do enredo e os cenários através de descrição oral. Dúvidas sobre a capacidade dos personagens interpretados pelos jogadores são resolvidas por jogadas de dados.

Observa-se, então, que os jogadores deverão interagir, conversar, ler, exercitar sua imaginação, raciocínio lógico, habilidade de trabalho em grupo e mais.

Mas como? Então o jogo não foi responsável por incitar aqueles jovens à violência e ao assassínio? Por que então isto vem sendo afirmado tão categoricamente?

Bem, quanto a isso, posso afirmar: é muito mais simples “encontrar” e “apontar” pretensos culpados que sejam alheios e desconhecidos do que refletir sobre a educação e princípios – desde os morais até os éticos – que foram mediados a estes jovens, ou a quem quer que tenha cometido este crime pérfido. Ainda, é sempre bom imaginar que foi algo fora da mente humana – um livro ou um jogo satânico – que tenha levado pessoas à barbárie. Isto, definitivamente, a afasta de todos nós.

É como se esta “distorção da realidade” dissesse que não é o ser humano o responsável pelas barbaridades que pratica, o culpado é “o outro”.

Ainda me lembro do estudante de medicina que repetiu uma cena de um videogame famoso atirando contra pessoas em um cinema. Culpe-se o jogo e não o próprio jovem. É muito mais seguro agir assim do que confrontar o “lobo” mencionado no início, habitante do íntimo da humanidade e que só é domesticado por práticas que exigem atuação responsável de pais e sociedade gerando seres éticos, de bom senso e caráter.

É claro que não se quer dizer que todos os sistemas de RPG tratem de temas acessíveis ou aconselháveis a todos os públicos. Assim como os filmes ou livros, há também sistemas que não são aconselháveis para menores de 18 anos.

Entretanto, há que se considerar que, pessoas de bom senso ao decidirem jogar RPG, ou supervisionar as atividades de seus filhos, selecionarão os sistemas que mais sejam adequados aos seus gostos pessoais ou aos seus padrões éticos – assim como selecionam tudo em suas vidas: desde programas de televisão, jogos de videogame ou computador passando pelos filmes e livros.

E, se, ainda assim, insistir-se em enxergar como problema a questão das referências à magia, a batalhas, a seres mágicos ou divinos – então, que se deixe de ler livros sobre o Rei Arthur, ignore-se as mitologias, deixe-se de assistir aos filmes épicos. Queime-se O Senhor Dos Anéis e esqueça-se de Tolkien. Esqueça-se de Lord Byron, Edgar Allan Poe e finja-se que o gótico nunca existiu. Queime-se Goya e todos os seus quadros e gravuras.

Façamos logo uma fogueira com todos estes livros, peças de teatro, quadros e filmes.

Agora, se você se perguntar o porquê de uma determinada emissora criticar fortemente um jogo em seus telejornais, afirmando que ele incita a violência e sugerindo que ele tem relação com o satanismo, enquanto que em seus programas infantis transmite um desenho como o Caverna do Dragão, cujo nome original Dungeons and Dragons revela sua origem em um certo jogo publicado no Brasil por uma editora concorrente – bem-vindo ao time!

E, se encontrar a resposta, me envie uma mensagem telepática. Na falta de poderes psiônicos, um e-mail serve.

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