quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Crônica: Meu sapato 37

Hoje assisti a um filme, Piaf, que retrata a vida de um dos maiores nomes da música francesa. A título de comparação, Edith Piaf está para a França como Roberto Carlos está para o Brasil e Frank Sinatra para os Estados Unidos: aquele tipo de cantor ou artista que, mesmo que você não goste, costuma manter um silêncio respeitoso devido ao impacto que eles tiveram e ainda têm sobre os outros.

É um filme que me comoveu e me fez relembrar outras pessoas, outros artistas: Maísa, Michael Jackson, Cazuza, Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Raul Seixas, Marilyn Monroe além de outros nomes que fariam sentido apenas para mim... pessoas que conquistaram, em medidas diferentes, respeito artístico e/ou profissional, ou dinheiro, ou respaldo da população e uma legião de fãs ou todos os anteriores. Se vivos, arrastam-se levianamente em suas meias-vidinhas de mortos-vivos. Se mortos, ainda vivem em seus filhos, canções, livros, filmes - em sua obra.

Estes que mencionei possuem um ponto em comum: a infelicidade. A falta de afinidade com o ser-feliz – não aquele estado passageiro que se manifesta vez por outra quando assistimos a uma comédia ou ouvimos uma piada. Ou quando se enche a cara ou droga-se passando a ver cores inexistentes – já que o efeito dos químicos é fugaz e depende de fontes externas, assim como o riso proveniente de películas ou anedotas.

A felicidade a que me refiro é a irmã perene da alegria e que com ela anda de mãos unidas. Aquele sentimento, cuja única fonte é interior, que faz com que você consiga ver a beleza; ou que sorria com e para as coisas mais inusitadas. Um estado de graça que pode ser acessado como um paliativo para a dureza da vida. Que pode surgir ao acessarem-se memórias ou aquele refúgio que todos preservam dentro de si e simboliza o conceito individual de felicidade – cada qual a sua maneira.

Para tornar este texto mais claro, falarei de minhas definições pessoais para estas palavras que serão recorrentes aqui: felicidade e alegria.

Felicidade, para mim, contrapõe-se à depressão (que neste texto, não se refere à patologia, mas antes à forma como se encara a vida e o mundo). Assim como a depressão, a felicidade é um estado constante, porém, de contentamento.

Este estado independe do exterior, apesar de que determinadas circunstâncias como saúde e satisfação física ajudarem em muito em sua manutenção.

Felicidade é a capacidade de se refugiar em si e sentir-se bem com o que se encontra na alma. Felicidade é magma: aquele derretido eterno de substâncias que queima, sem grandes profusões, no centro da terra e que sustenta todo o exterior. As explosões deste magma constituem a alegria, que é o oposto da tristeza. Algo como a lava incontrolável sendo expelida de um vulcão. Assim como o fogo de artifício e o estouro vulcânico, a alegria tem tempo limitado e, geralmente, manifesta-se quando estimulada pelo exterior. Já a felicidade, como o magma, queima silenciosamente mantendo a alma aquecida.

Assim, pode-se estar alegre, ou ser alguém alegre sem se ser realmente feliz. Ou pode-se estar triste, devido a alguma dificuldade trazida pela vida, e ainda assim ser-se feliz.

O fato é que a vida de pessoas bem-sucedidas e dos artistas famosos e infelizes sempre me intrigou, independente de eles serem ou não de minhas relações ou de agradarem ou não ao meu paladar. Sempre me fizeram perguntar por que pessoas que possuem o que é desejado pela vasta maioria dos viventes-pensantes não são felizes. O que elas desejariam? O que lhes faltaria?

Penso nisto novamente aqui na minha sala, ainda digerindo a vida de Piaf, enquanto ouço música linda interpretada por Renato Teixeira. “Ando devagar porque já tive pressa/ levo este sorriso porque já chorei demais”...

Engraçado como “certas canções que ouço calam tão dentro de mim/ que perguntar carece/ como não fui eu que fiz”, segundo cantaria Bituca. É assim que me sinto quando escuto esta linda música interpretada por Teixeira.

E ela me faz, novamente, retomar as vidas dos infelizes, que, aparentemente, não possuem motivos para sê-lo. Quando leio livros dos autores que mencionei no início ou quando converso com estes seres infelizes ou quando vejo filmes de James Dean ou Monroe, ou quando escuto algumas músicas dos compositores ou intérpretes que mencionei no início – sim, eu escuto Edith Piaf e não desprezo os Jackson Five (por mais inusitado que isto possa parecer) é-me impossível não perceber certas coisas.

Por exemplo, ver oculto atrás do sorriso sensual de Marilyn a Norma Jean infeliz que morreu depois de overdose de remédios e que amava homens impossíveis enquanto desprezava ou mal-tratava aqueles que, de fato, a amavam. A questão de a super-dosagem que a levou a morte ter sido intencional ou não é o que menos importa para o que discutimos aqui. O simples fato de que ela precisasse destas doses, assim como Edith, Jackson, Seixas, Poe e tantos outros, para suportar as dores de suas vidas é o que me intriga e denuncia a infelicidade – a incapacidade de atingir seu refúgio interior sem o auxílio de químicos (legais ou ilegais, sob prescrição médica ou não, pouco importa, se estão sendo usados para substituir algo que deveria existir naturalmente).

Senti o mesmo “encabulamento” ao ver vídeos caseiros de Jackson brincando com os filhos em casa e comparando aquelas risadas com sua dor pública tão exposta e comentada em todo o mundo. Em se tratando de Piaf também, não se exige esforço para que se enxerguem suas dores, já que seu coração ficava em sua garganta, mais precisamente em suas cordas vocais.

Poe falou excelentemente das sombras que também me habitam – já que habitam em todos nós. Já Raul ajudou a deixar tudo mais claro em Sapato 36, quando falou do sentimento de não-pertencer, não-caber, do sentir-se apertado no espaço que lhe é reservado – não importa o tamanho que este tenha.

E a música cantada por Teixeira? Que tem ela a ver com isto tudo? Bem, de ínício, já afirmo que ela realmente mexe comigo por remeter à época em que eu morava com meus pais em BH. Eles, especialmente meu pai, sempre gostaram de canções regionais e me habituei à forma como soam alguns cantores ou como choram suas violas e como falam certas verdades suas poesias.

Se eu pudesse, de fato teria enviado a cada um daqueles que citei no início, esta beleza em forma de verso suavemente cantada por Renato. Há um trecho em que ela diz que cada um de nós “carrega o dom de ser (...) feliz”. Isto é exatamente o que este tipo de pessoa carece de saber – a letra diz uma verdade. Expressa a maneira como me sinto e a filosofia que gostaria de poder sustentar: o que leva a felicidade é inerente ao ser humano.

Antes que algum de meus velhos conhecidos pense que enlouqueci por estar citando músicos como Renato Teixeira e Milton Nascimento (também apelidado de Bituca), posso dizer que estou em meu juízo perfeito – o que não quer dizer muito, eu sei - e nem coloquei fogo nos meus discos de Metal. Até mesmo na minha seleção de hoje entre uma música regional e outra, estou também ouvindo Dio, quando ainda no Rainbow, além de umas bem velhinhas do Sabbath e do Iron Maiden.

É, hoje é dia de saudosismo. Só velharia.

Mas é que vidas tristes de pessoas que parecem não ter encontrado a felicidade, mesmo tendo procurado por ela, me entristecem. Muito.

E quando estou triste recorro às minhas velharias. Elas me ajudam a acessar o meu refúgio interior.

Quanto às pessoas tristes, elas parecem ter saudade de algo não vivido, buscar um não-sei-o-quê muito difícil de encontrar.

Julgo angustiante que a felicidade tão falada e cantada ande se ocultando de gente por aí, que se cerca de tristeza, frustração, leviandade impedindo àqueles que as cercam – sejam amigos ou familiares - de encontrarem-na também.

Mas, pergunto: o que é necessário para que se seja feliz?

Dinheiro? Fama? Fé? Deus? Filosofia?

É preciso crer em algo ou em nada? É preciso ter família ou não tê-la? Amigos ou inimigos? Filhos? É preciso estar só ou acompanhado? Ter amor ou viver consigo mesmo? Distanciamento ou aproximação? Música ou silêncio? Trabalho ou ócio?

Tristemente, a resposta me escapa.

Cada uma das opções anteriores possui suas próprias vantagens e desvantagens e até onde posso perceber, as respostas podem variar de indivíduo para indivíduo.

É a única verdade que posso oferecer.

O certo é que prefiro crer no que cantou Teixeira: cada um carrega em si “o dom de ser capaz e ser feliz”.

Sendo assim, só espero encontrar minhas próprias respostas, meu próprio sapato 37, sentadinha ao lado da cachoeira que banha meu esconderijo secreto tomando suco de laranja, antes de ir para o lugar onde estão todos os meus heróis, mortos ou não de overdose.

3 comentários:

Joelmir Tavares disse...

Belo texto, Érica. E definições exatas para felicidade e alegria - com as quais concordo. E, quanto aos ídolos musicais, é preciso dizer que não há piores ou melhores, em se tratando dos nomes que você citou; há, sim, diferentes estilos. Mas todos são artistas do mais alto quilate.

Érica Araújo Castro disse...

É, Joelmir, esta definição me custou um bocado de reflexão. E realmente, no final das contas, em se tratando de música, o que deve valer é se ela tem ou não qualidade e autenticidade.

Eduardo Lara Resende disse...

Dou razão ao Joelmir. E V. está certa, Érica. O texto é verdadeiro e bem escrito, e sugere reflexão e sacode os distraídos da vida que já possam ser felizes sem o saberem. Vale e valerá sempre tentar definir e redefinir o mistério de ser feliz e de levar felicidade a outros.
Abraço grande.

 
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