terça-feira, 20 de outubro de 2009

Joana D’Arc de Mark Twain??

Publicado no jornal Conhece-te a ti mesmo, edição de Out./09

Foi esta a pergunta que me fiz ao me deparar com o livro sobre o qual prosearemos este mês, na prateleira de um dos supermercados de Conselheiro Lafaiete.

Já conhecia Mark Twain, o pseudônimo mais famoso de Samuel Langhorne Clemens (1835-1910), um dos escritores americanos modernos mais respeitados. Já li várias de suas obras: contos, livros. Neles, o que há de sempre presente é sua veia humorística, extremamente crítica – e por vezes imoral: ele usou seu grande talento para denunciar a escravidão, por exemplo, além de retratar pitorescamente a realidade das pessoas comuns reproduzindo seus diálogos e seu modo de vida, ou para questionar a importância da religião ou para exaltar, por exemplo, os prazeres do onanismo.

Devido ao teor altamente explosivo de alguns de seus escritos, sua família evitou a publicação de vários deles, que apenas vieram à luz décadas depois de sua morte. Suas histórias e personagens mais famosos orbitam ao redor do rio Mississipi e do modo de viver dos barqueiros – profissão que ele mesmo exerceu em uma parte de sua vida e de onde, segundo ele mesmo, retirou seu Mark Twain. Este seria um grito dos condutores de barcos que significaria que havia profundidade suficiente para navegação em determinado trecho do rio. Tal explicação dada por Clemens é questionada – e dada a sua fértil imaginação, não seria de se assustar se se comprovasse que é fictícia. O assunto, portanto, permanece inconcluso.

É deste universo social permeado de humor, ironia, sagacidade e também da maldade humana é que surge um livro absolutamente inesperado como Joana D’arc: Reminiscências pessoais de Joana D’Arc pelo Senhor Louis de Conte (seu pajem e secretário), subtítulo esse que faz referência ao fato ficcional de que o próprio auxiliar de Joana D’Arc teria desenvolvido este relato. O livro foi escrito em 1896.

Para ainda mais ressaltar a verossimilhança, Twain acrescenta ainda a figura de uma terceira pessoa: o tradutor – pessoa ficcional – que teria traduzido do francês arcaico a crônica histórica de Louis de Conte, que por sua vez a escrevera quando já idoso.

A narrativa pelo olhar de Conte, feita por Twain, tornou a história quase palpável – mesmo nas partes onde a menina conversa com anjos.

O livro é dividido em três partes: I) Em Domrémy; II) Na corte e no Campo de Batalha e III) Julgamento e Martírio.

Na primeira parte conhecemos Joana ainda criança, crente em Jesus e nas fadas com a mesma intensidade. É dito no livro que as crianças do vilarejo de Domrémy são, desde sempre, protegidas por suas amigas fadas que são banidas por um grande engano. Conhece-se ainda a maneira como Joana desenvolve sua enorme habilidade oratória que a levou a grandes vitórias e conquistas.

Aqui, devo confessar que a doçura intensa da figura da menina chegou a causar-me certa repugnância – como se a mente recusasse a existência de alguém tão puro conforme ela foi descrita por seu amigo. Mas, há que se lembrar que a tessitura do texto de Twain tem como base a “produção” de um cronista medieval, o qual nutria grande admiração pela personagem tema, o que bem justifica o tom dulcíssimo da primeira parte da narrativa.

Na segunda parte a personagem transforma-se: de criança inteligente a adolescente decidida e convencida de suas obrigações divinas – o que leva até mesmo às pessoas mais improváveis a ajudá-la. O poder de sua oratória tão bem desenvolvido ao longo de sua infância é impressionante, apesar de que ela jamais frequentara escolas ou fora sequer ensinada a ler – daí a necessidade de ter um secretário pessoal de absoluta confiança que escreveria todas as suas cartas. Esse era na história, obviamente, o papel de Conte.

Aqui há, ainda, passagens pitorescas que me levaram às gargalhadas como quando o tio de Joana descreve um acontecimento em que, ao adormecer no campo, esperando a hora para um velório, decide montar em um touro que, acidentalmente derruba uma colméia causando grande confusão no enterro.

Outras ainda lhe conduzem a um sentimento primordial de amor ao seu lugar, aos seus, à sua pátria como quando é descrita a tomada da bastilha de St. Loup: a forma como Joana o faz, na narrativa, sempre conduzindo seus soldados pela força de suas palavras e pela simbologia de seus atos é, de fato, emocionante. É-se capaz de sentir a fumaça dos canhões e o vento no rosto ao cavalgar-se sobre as palavras de Twain para dentro do campo de batalha ao lado da heroína francesa.

É aqui ainda, nesta parte do livro, que Joana deixa de ser uma pessoa e passa a ser a pátria – ela é a França e assim é vista pelos seus e como tal é defendida por seus soldados.

A terceira parte conta de seu julgamento pelo bispo de Beauvais Pierre Cauchon – posteriormente decretado herege pela Igreja por ter condenado à morte na fogueira uma inocente em troca de cargo e poder (oferecidos pelo governo inglês). É uma parte pesada e emocionalmente desgastante já que o narrador põe seus próprios sentimentos de expectativa de salvação que, sabe-se, são frustrados ao fim.

A narrativa é linear, a exemplo das produções medievais – Twain mostrou-se impecável emulando as características dos primeiros historiadores.

Twain, que admirava a Joana D’Arc histórica desde que um fragmento de sua história caiu em suas mãos quando ele era ainda adolescente, coloca-se sem intermediários – secretário ou tradutor - no apêndice, assinado por ele, onde ele esclarece alguns dos acontecimentos posteriores ao martírio da Donzela, como, por exemplo, seu julgamento de reabilitação, aberto vinte e cinco anos após sua queima como bruxa e herege.

O autor mescla ficção e história – sua pesquisa para a construção deste texto durou mais de uma década, o que lhe dá forte embasamento histórico. Sendo assim, é-se conquistado pela figura fictícia/histórica desta adolescente que, aos dezessete anos de idade, sem possuir escolaridade em nenhum nível, torna-se a comandante máxima do Exército Francês, conduzindo-o à reconquista da França que jazia sob o controle inglês por décadas.

E mais, tornou-se santa: ela foi canonizada em 1920, dez anos após a morte do escritor americano.

Assim, conhecemos Joana D’Arc - pelo olhar de Mark Twain – alguém histórico, cuja vida pode ser lida nos processos em que foi envolvida – mas que certamente, está além de qualquer explicação racional.

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