terça-feira, 30 de junho de 2009

Votar ou não votar, eis a questão

Mais um escândalo: mais uma vez o palco é o senado. De uma maneira recorrente, nos últimos anos tenho me sentindo em um filme no qual um roteirista sem talento e repetitivo quer fazer seu texto soar como novidade ao utilizar-se de personagens diferentes.

Desde o início da era Lula-lá uma sucessão de escândalos têm exposto as entranhas podres da nossa politicagem (é claro que não sou simplista e leviana: não afirmo que a corrupção surgiu com Lula – apenas digo que para quem se auto-elegeu o bastião da honradez, ele é muito conivente). Digo que fazemos politicagem porque, até onde percebo, não fazemos política há tempos. Chego até a me perguntar se é que alguma vez em nossa história chegamos realmente a fazer.

Segundo o dicionário Priberam de Língua Portuguesa (consultado em 27/06/09) vê-se a seguinte definição sob o verbete política: (grego politiká, assuntos públicos, ciência política) s. f.
1. Ciência do governo das nações.
2. Arte de regular as relações de um Estado com os outros Estados.
3. Sistema particular de um governo.
4. Tratado de política.

Estas definições fizeram-me questionar o quanto nossos políticos estariam (ou não) familiarizados com o termo. Vê-se que política é Ciência, Governo, Regulação. Todas estas nos dão a idéia de organização, precisão, direcionamento – características que parecem nos faltar neste ramo.

Porém, continuando minha leitura sob o verbete, pude ver que de alguma forma, fazemos política já que, o mesmo vocábulo é também:

5. Fig. Modo de haver-se, em assuntos particulares, a fim de obter o que se deseja.
6. Esperteza, finura, maquiavelismo.

Ora, estas últimas definições me fizeram pensar na estrutura sobre a qual se desenvolveu a nossa maneira de fazer política (que parece adaptar-se mais a elas do que às anteriores).

Quando os “homens bons” aportaram em nossas paragens com suas escrituras de doação de largas porções de terra, já se sinalizava como seria nosso futuro: maquiavelismo, esperteza, nepotismo, favoritismo, a coisa pública sendo usada em beneficio próprio “a fim de obter o que se deseja” etc.

Um senhor, dono de capitania hereditária, transmitia, qual rei vassalo, o poder a seus descendentes, de forma que eles, por sua vez, sugassem o que pudessem das tetas da Pátria - acumulando riquezas para si, para os seus e para a metrópole – quanto menor a fiscalização, mis esta ordem de prioridades se ressaltava. Todos tratavam de haver-se, de se ajeitar.

Com o correr do trem da história, estas práticas não foram abolidas – nem mesmo realmente combatidas. Presentemente, existem leis contra o nepotismo – alguns podem argumentar – mas quando vejo os jornais, a impressão que tenho é que são daquelas leis que ninguém gosta, ninguém quer, ninguém fiscaliza. Em resumo, ninguém sabe, ninguém viu.

Aliás, a verdade é que se deveria estudar o encanamento de Brasília. Certa vez li alguns estudos que sugeriam que os imperadores romanos eram tão comumente acometidos pela loucura devido ao acúmulo de chumbo em seus organismos derivados do encanamento feito com este material.

Em Brasília, a água pode estar causando perda da visão e da capacidade de apreender fatos – algo relacionado à perda de memória, afinal, jamais se viu tanta profusão de “eu não sabia” (e suas variantes), “eu não vi” (e suas variantes).

O primeiro acometido desta moderna doença foi o nosso erudito presidente o qual, mesmo que seus auxiliares mais próximos estivessem intimamente envolvidos em esquema de recebimento e pagamento de propinas (o quase esquecido mensalão) para garantir apoio político ao PT, assim como o caixa dois do mesmo partido, continuou afirmando que de nada sabia, nada vira e a tudo ignorava. Interessante relembrar que este mesmo PT, aclamado por filiados como a epítome da ética e da moral, teve suas ações defendidas por Lula-lá (quando não teve mais como negar as denúncias – frise-se) com a singela frase: “todo mundo faz”.

Espero que aos empresários não seja permitido usar do mesmo ardil: ao se descobrir que suas empresas estejam envolvidas em esquemas corruptos, que eles não possam simplesmente lavar as mãos e dizer que ignoravam, não viram ou não acreditam, posteriormente justificando com “todo mundo faz” e escapem ilesos.

E, ano após ano, ele continua com a política de “muito barulho por nada”: os errados somos nós que cobramos, é a mídia que denuncia. Much ado about nothing, já dizia Shakespeare, certamente intimamente conhecido de nosso comandante, já que é tão citado por ele.

Recentemente, acolhendo e classificando a José Sarney como cidadão incomum, acima de todos nós e de nossa Constituição, Lula deve ter aumentado a resistência física do cadáver de Ulisses já que o obrigou a dar voltas em seu túmulo marítimo, incomodado que deve ter ficado ao ver que as leis pelas quais tanto batalhou não abarcam toda a população. Existe uma classe privilegiada que não está submetida a elas – a dos homens que fizeram história. Mesmo que o homem em questão seja nosso ex-presidente, imortal da Academia Brasileira de Letras por sua extensa produção intelectual, cuja família senta-se inerte sobre os problemas do Maranhão.

Por falar em Maranhão, ele fica aqui mesmo neste país – e não no Sudão como pode supor qualquer passante desavisado que tenha que usar banheiros de lona ao se chacoalhar pelo excelente pavimento do estado. Quem sabe o milhão encontrado no comitê da filha daquele mesmo ex-presidente maranhense porreta não ajudasse a tampar alguns buracos?

Mas, voltando ao nosso estimado presidente atual, este cuja atuação internacional nos rendeu a perda de uma cadeira na ONU e afrontas não respondidas dos hermanos vizinhos, que estatizaram prédios da Petrobrás e romperam acordos bilaterias (sem esquecer, é claro, dos tapinhas nas costas do esclarecido, culto e bem ajambrado Ahmadinejad, além da tentativa de abertura da embaixada em um país de absoluto respeito internacional – a Coréia do Norte). Ele mesmo, com seu jeitinho brasileiro de quem não se mexe quando vê alguém fazendo algo que o beneficiará sem esforço, finge não ver nada enquanto aliados do baixo clero tentam (esperemos que em vão) ver se há espaço para arquitetar um terceiro mandato ou aumentar os mandatos para cinco anos e impedir a re-eleição.

O que ele ganharia com isto? Ora, a possibilidade de esperar menos para poder concorrer de novo e, após ganhar, reafirmar que os cinco anos são balela e tentar modificar tudo para se re-eleger novamente. E alguns ainda o consideram ignorante...

O óbvio é que a sede de poder tomou de assalto o PT. Mas, quanto disto ainda poderemos suportar é a questão que, de fato, importa.

Mensalão, terceiro mandato, crise nas assembléias, terceiro mandato, crise no senado, terceiro mandato... Sinto-me um dos três porquinhos na casinha de palha com o lobo soprando do lado de fora.

Mas, ainda pior do que políticos mal intencionados e suas elucubrações, é perceber que existe um fôlego para o terceiro mandato: logicamente a população paupérrima que se sustenta com o Bolsa Família ou com qualquer outra esmola fornecida pelo poder federal vai levá-lo de volta ao Palácio por 500 mandatos, se possível for.

Assim como levará Severinos, Jeffersons, Sarneys, Newton-Cardosos e demais de volta aos seus postos prontos a executar quantas políticas assistencialistas forem possíveis para garantir sua volta perene aos seus mandatos ou a outros, segundo seus interesses.

E o voto obrigatório é a ferramenta mais preciosa e acurada que pode existir para que se garanta isto. Enquanto a massa inculta enche a barriga com a esmola do governo e freqüenta escolas deprimentes que não a conduz à informação e ao raciocínio crítico for obrigada a comparecer às urnas, esta falácia continuará sendo parte de nossa história. Elas retornarão ao poder pessoas com a mesma mentalidade colonial (proteção do próprio em detrimento da coisa pública) de sempre.

É claro que não quero dizer que a população que sofre de privação deveria ser deixada a própria sorte enquanto apenas ações de longo prazo são executadas para garantir educação, saúde e emprego para futuras gerações. Programas que forneçam a estas famílias o que comer hoje – já que a fome não espera – são de vital importância. Todo o problema surge quando tais programas não são acompanhados de um plano de ação cujos objetivos sejam fornecer meios para a geração de renda por parte das próprias famílias necessitadas. Da maneira como é feito pelo atual governo, pesca-se eternamente o peixe para que, ao não saber pescar, a família não produza um número maior de peixes que lhe possibilitem investimentos outros, como em informação e educação, as quais levam ao senso crítico – que retira políticos ineptos.

Círculo vicioso perfeito, como se pode perceber.

É a certeza de que esta população perpetuará no poder os eternos “pais dos pobres” é que me faz partidária do voto não-obrigatório.

Quando o voto não é exigência como em nosso país, apenas aqueles que desejam realmente votar comparecem, é claro. Para que se deseje votar, tem-se que acreditar em um candidato o suficiente para deixar o churrasco de domingo com a família, para enfrentar a fila da urna.

Alguns argumentam que assim, o destino do país correria o risco de ser decidido por uma minoria.

Desde que esta minoria fosse pensante, informada e engajada, para mim não haveria problema: a decisão deles refletiria uma visão crítica acerca do panorama político do país. Certamente, não haveria voto comprado com assistencialismo. E se houvesse, ele, possivelmente, não garantiria a eleição de incomuns – como nosso distinto e exemplar senador que sofre do mesmo mal do nosso sábio presidente: a ignorância (do verbo “ignorar, não saber” – que fique claro). Ignorância esta que remete ao fato de que a população deseja as definições de 1-4 para a nossa política e um basta nas 5 e 6 (Segundo o dicionário mencionado no início desta crônica).

Vê-se, afinal, que o voto em massa, como hoje, não nos leva à depuração daqueles que regem nossas vidas (afinal, políticos tomam as decisões que nos afetam diariamente). Já se afirmou, sabiamente, que a “massa é burra”. Sendo assim, “massa burra” elegendo produz fornadas infinitas de pizzas.

É óbvio que não quero afirmar que o simples fato de fazer da votação algo não obrigatório agirá com força balsâmica curativa sobre todos os nossos males históricos. Afirmo apenas que, se o comparecimento às urnas ficasse atrelado à vontade e motivação do eleitor, políticos e partidos teriam que se desdobrar em resultados para comprovar suas ideias e ideais a fim de que, com motivação aflorada, a população lhes confiasse a procuração, que é um mandato.

É o que se vê acontecer em países em que o sistema eleitoral já funciona assim: quando algum candidato faz crer à população que suas propostas são exponencialmente melhores e mais bem fundamentadas que as dos outros, os cidadãos comparecem em massa para garantir sua eleição.

Mas, o que de fato sei é que da maneira como está hoje, de que adianta votar conscientemente se, a cada voto consciente corresponderem centenas de “votos de fome”?

Alguns, ainda adeptos da utopia do “vamos conscientizar a população”, crêem que há jeito. Porém, com todo o meu ceticismo e pragmatismo afirmo que quem não possui alimento, saúde e educação é, sem maiores esforços, usado como massa de manobra por aqueles que não padecem da falta de alimento, nem de saúde, nem de educação. Mas que padecem sim da falta de brio, moral e ética.

Resta-nos, com certeza, pouquíssima esperança de mudança.

Mas, ela é a última que morre, Deus é brasileiro, tudo é lindo no país do carnaval e maravilhoso na Copa do Mundo (desde que a gente ganhe, é claro).

Panis et circus - como se vê não são apenas problemas de encanamento venenoso que nos aproximam da antiga Roma.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sobre jornalistas, pintores e escritores

(Sei que nossa prosa para esta semana já estava impressa no texto Movimento Surrealmente Terrorista, mas é que não poderia me furtar a comentar este fato!)

SIM, EU CONCORDO COM O SUPREMO!

Esta exclamação, qual brado de libertação, já me valeu diversos olhares cínicos e, até mesmo assassinos, mas, arrisco-me uma vez mais, dizendo em público, que concordo com a decisão do Supremo.

Há muito, inclusive, venho refletindo sobre este tema e o fato é que realmente acredito que os jornalistas – aqueles que produzem matérias – não necessitam de diploma. Precisam, sim, de senso crítico, capacidade investigativa, ética, escrita de qualidade, capacidade expositiva dentre uma gama de outras qualidades.

Agora, me respondam sinceramente se tais qualidades são passíveis de serem adquiridas na faculdade – qualquer que seja ela?

Um aparte faz-se necessário: não estou afirmando, irresponsavelmente, que especialistas em jornalismo são desnecessários. Jamais imaginei ver o editorial de um jornal entregue a quem não conhecesse os meandros da comunicação.

Entretanto, o que afirmo e reafirmo é que para se escrever matérias cujo conteúdo seja altamente informativo, preciso, imparcial (quando for o caso de mera informação) ou parcial (quando o caso for de emissão de opinião ou posicionamento) não é necessário que se seja formado em uma faculdade de comunicação.

O que me levou a esta opinião foi o seguinte raciocínio: será necessário exigir que o pintor ou escultor sejam formados em faculdades de artes plásticas para que se reconheçam seu talento e lhes sejam abertas portas de galerias? Não. Mas, é necessário que o responsável pela galeria tenha formação específica para que possa reconhecer e disponibilizar espaço para aqueles que, de fato, possuam talento? Sim.

Será necessário que um escritor seja formado em letras para que possa publicar livros de qualidade? Não. Mas é necessário que o editor tenha formação específica para que possa avaliar quais escritores e livros compensam o investimento? Sim.

O mesmo raciocínio pode ser aplicado ao jornalismo, como se pode facilmente inferir.

Ainda continuo: seria mesmo o profissional formado em comunicação a pessoa mais indicada para opinar ou relatar fatos políticos, econômicos, pedagógicos do que os profissionais destas áreas específicas?

Alguns argumentam que já era possível que estes outros profissionais, em colunas específicas, manifestassem suas produções em jornais como colaboradores. Mas, ora, dê-se nome aos bois: porque evitar chamá-los de jornalistas se o que eles fazem é produzir jornalismo?

Outra argumentação é que se estaria perdendo em qualidade de informação ao se tornar desnecessária a posse de um diploma em comunicação. Argumento contrariamente por duas vertentes.

Primeira: uso a fala de editores de jornal entrevistados quando da divulgação da decisão do STF que afirmaram que os critérios de contratação de profissionais continuarão os mesmos – ou seja, diploma ainda será requerido na maior parte ou na totalidade dos casos. Sendo assim, a qualidade do profissional estará, parcialmente, preservada.

A decisão do STF, então, abriria, apenas, a oportunidade para que aqueles que podem usar da palavra com maestria em áreas diversas de conhecimento possam fazê-lo usando do nome correto para suas atribuições: jornalista.

Segunda vertente que garantiria a qualidade: a exigência dos leitores, telespectadores e ouvintes.

Como assim exigência, sendo que a falta dela é que é notória?

Explico-me: todos conhecemos vários jornais, portais de internet que divulgam notícias, rádios, canais de televisão. Alguns de maior qualidade outros de menor qualidade. Pergunto: quais são aqueles que possuem maior penetração? Aqueles que possuem maior qualidade técnica e argumentativa, é claro. Ainda mais, aqueles que sabem colocar a informação desejada da forma requerida por seu público alvo.

E os outros? Não vingam. São legados ao esquecimento – como em qualquer outra profissão ou meio.

E mais, convém acrescentar que a lei que foi derrubada pelo STF foi implantada na época da ditadura militar, portanto, sob regime de exceção. Seu objetivo era fazer com que menos pessoas tivessem o poder da palavra – pois é isto que o jornalista tem: o poder da comunicação e, porque não, do convencimento. Há que se imaginar o perigo que representavam homens e mulheres cultos, informados, respeitados e de máquinas e canetas em punho. Podem-se mencionar Clarice Lispector, Drummond, Nélson Rodrigues, Bluma e Samuel Wainer, Paulo Francis, dentre outros (por falar nisto, alguém poderia me dizer em qual faculdade de jornalismo eles se formaram?). Isto, mencionando apenas importantes jornalistas brasileiros.

Significam minhas afirmações que eu defendo que o poder da palavra seja dado a qualquer indivíduo?

Sim e não.

Sim, qualquer indivíduo deve poder se expressar e relatar suas opiniões. (Vivemos em uma democracia onde a liberdade de expressão é garantida pela Constituição, certo?) Escute-o quem quiser.

Mas, também digo que não: nem todos os indivíduos merecem ser detentores da palavra uma vez que podem emitir opiniões contrárias ao que é justo, legal, moral, ético.

Então, o que fazer?

Nada.

Como assim?

Não é necessário que se faça nada: a mola que move o mercado e o capitalismo – e que é bem exigente – se fará presente para selecionar aqueles que serão ouvidos ou ignorados.

Entenda-se por mercado os leitores, ouvintes e telespectadores e como produto a notícia. Os primeiros apenas usarão seu tempo para prestar atenção à segunda, se a considerarem relevante e de qualidade – sendo assim, relegarão ao oblivion tudo o que não se encaixar em suas expectativas.

Sendo assim, fica claro que não quero dizer que para o exercício do jornalismo não é necessária formação. É claro que sim. Os jornalistas são formadores de opinião e é necessário que conheçam o assunto de que se propõem falar – mas, não é necessário que tenham formação em Comunicação, mas sim, em suas diversas áreas de atuação.

Além do mais, não quero jamais afirmar que o curso de Comunicação Social é irrelevante. A bagagem teórica que a que ele expõe seus estudantes é, de fato, interessante abarcando campos da filosofia, línguas, etc. Seria até, imprescindível, ouso afirmar, para um editor.

Mas não para aqueles que usarão do poder da palavra para o exercício da reportagem e da informação, já, que o que se exige de quem o faz são características como excelente texto (oral ou escrito), conhecimento específico, capacidade de inferência e investigação, síntese de dados, caráter e ética. Agora, alguém me recomendaria uma faculdade que ensinasse o indivíduo a ter tais qualidades?

Ou, que se me apresente o diploma do Drummond.

Movimento Surrealmente Terrorista

Ainda me lembro da primeira vez em que ouvi falar de reforma agrária: devia ter uns onze ou doze anos e estudava em uma escola pública de referência em Belo Horizonte.

Lembro-me claramente da professora de geografia falando. Ela ostentava orgulhosamente um broche de estrelinha vermelha com a sigla do PT – me pergunto se ela ainda o usa. Em sua fala, minha antiga educadora exaltava a necessidade premente de tal reforma para fornecer terras àqueles que não a possuíam e que eram injustiçados pelos latifundiários proprietários de levas infindáveis de terras, que não utilizavam: um acinte.

Para mim, as idéias dela e do livro didático utilizado então (declaradamente de esquerda) faziam total sentido.

E, como é muito característico da minha personalidade – sou extremamente curiosa e perguntadeira - comecei a relacionar o que ouvia na escola com o que via.

Minha curiosidade ficou ainda mais aguçada devido ao fato de que em nossas viagens anuais em família, eu sempre via terras e mais terras: quase tudo cercado – muitas vezes plantado ou com gado. Mas, se se procurasse direito, ainda encontravam-se alguns pedaços sem cercas. Em uma destas vezes eu perguntei ao meu pai o que aconteceria se decidíssemos morar em algum pedaço de terra, aparentemente não utilizado, não cercado, de uma hora para outra. Queria saber se alguém teria o direito de nos retirar. Meu raciocínio era simples: já que o Brasil era nosso, se a terra não estava sendo utilizada por ninguém é porque poderia ser utilizada por qualquer brasileiro (crianças são de fato inocentes...).

A resposta dele foi uma risada... Seguida da explicação de que o Brasil é dos brasileiros, sim. Mas que há questões envolvidas na propriedade de terras: é necessário comprar de alguém ou do governo para se ter a posse desta terra e poder utilizá-la para o que quer que fosse. Ele ainda exemplificou dizendo: e se tivéssemos uma fazenda ou sítio, gostaríamos de vê-la invadida por outrem alegando que eles a utilizariam melhor que nós? É claro que não! Já imaginei meus cavalinhos e vaquinhas – que não possuía – sendo montados e aboiados por outros que não nós mesmos. Aprendi ali que a propriedade é algo sagrado, inviolável.

Isto também fez todo o sentido par mim.

Claramente, os dois conceitos: propriedade e coletividade (implícitas nas idéias de “possessão de terras” e “reforma agrária”) começaram a se chocar. É interessante como as idéias que fazem sentido e são bem argumentadas, mas são conflitantes, se digladiam na nossa cabeça até que se decida qual ponto defender ou acreditar.

Sendo assim, ora eu admitia que é injusta a situação dos que possuem terras e não as utilizam impedindo famílias de obterem seu sustento; ora eu pensava no direito à posse do que você adquiriu ou herdou e utilizava, de fato. Este meu embate cerebral durou anos, posso dizer.

Ao longo destes anos, outros conceitos e observações foram sendo feitas – assim como outras leituras: de esquerda, de direita, de centro e indefinidas.

Em minhas observações, vi surgir ou se tornarem conhecidos vários movimentos que se utilizavam da defesa dos direitos dos despossuídos – dos sem terra, sem teto, dos sem emprego.

É engraçado como todos se iniciam apregoando conceitos de notória justiça: direito à alimentação, moradia, dignidade – absolutas prerrogativas humanas.

Passeatas se desenrolavam.

Nestas, sempre era possível observar que, em meio às muitas bandeiras hasteadas, em meio aos que gritavam palavras de ordem, havia sempre uma, em quantidades marcantes, que me remetia à minha ex-professora de geografia... Mas pouquíssimas vezes eu observava bandeiras do Brasil – quando estas se faziam presentes, era sempre em pequeníssimo número. Ainda me pergunto o que isto quereria realmente dizer.

Ao mesmo tempo, sempre a observar e refletir, vi se tornarem conhecidos ou mais barulhentos movimentos que aclamavam “direitos” menos nobres, dentro e fora do Brasil: “direito” de viver apenas junto de sua etnia (eliminando todas as demais), “direito” a ter um país (eliminando todos os que desejassem também aquele país, ou que não permitissem sua liberdade), “direito” a ter uma fé e vivenciá-la diariamente (mandando pelos ares todos os que professassem fé diferente)...

Siglas sucediam-se carregadas de mistério e significado: ETA, IRA, OLP – os terroristas da minha infância: assombravam meus pesadelos assim como o Saddam Husseim assombrou meu menino anos depois. (Literalmente, pois, certo dia, ele, com uns três aninhos, me chamou na hora de dormir e disse estar com medo do Homem Barbudo entrar pela janela aberta. Homem do Saco, Bicho Papão (debaixo da cama ou dentro do armário) eram meus velhos conhecidos. Este tal Homem Barbudo era novidade. Quando lhe perguntei quem seria tal homem ele me disse ser o Saddam Husseim, que ele sabia ser do “Iraque”, usar barba e ser mal).

Terrorismo, então, passou a ser para mim, sinônimo de ônibus, prédios, ruas explodindo. Sunday bloody Sunday. Invasão e quebra-quebra em propriedades privadas ou particulares. A dogmatização de crianças em escolas onde aprendiam a falar em voz alta, ininterruptamente, frases religiosas ou a defender ferrenhamente a visão de seus pais e professores. Aprendendo que é bom matar ou morrer por esta visão. Sofrimento de pessoas ditas inocentes – muitas vezes o desconhecido passante que estava no lugar errado, na hora errada: repentinamente, explosão e braços e pernas pelos ares. Enfim, aprendi que terrorismo era tudo o que provocasse terror.

Com o correr dos anos, e com menos resultados do que esperado em caixa, alguns destes movimentos, ao passo que permaneceram com as mesmas ideias, convenceram-se de que era melhor usar a ideologia para dogmatizar seguidores, aumentando mais e mais seus adeptos, e se fazer ouvir. Como passaram a desejar o apoio e o respeito internacional – o que determinantemente facilita algumas conquistas, suavizaram suas ações: em vez de bombas em ônibus ou atadas a pessoas, começaram a utilizar as urnas. Em alguns casos, o apoio popular fez com que estas organizações conseguissem em poucos anos o que não haviam conseguido em décadas de combates.

É claro que não quero simplificar uma questão extremamente complexa que envolve as relações sociais de diversos povos, e nem ignoro que enquanto se utilizam do voto, determinadas organizações permanecem apoiando o terrorismo por outros meios.

O que quero dizer é que, organizações antes violentas, extremistas, estão se tornando menos agressivas – mesmo que mantenham a defesa da mesma ideologia, seja ela justa ou não.

Já no Brasil, a impressão que tenho é que se dá o oposto: certas organizações parecem querer migrar das passeatas e da dogmatização ideológica para o terror.

Tome-se o caso do MST e da Via Campesina – menciono-os, pois são os de que mais se fala na mídia.

Quando eu estava lá, sentadinha na cadeira da escola, e minha professora de geografia falava de reforma agrária, o MST fazia passeatas e reivindicava algo absolutamente justo: o direito de famílias de lavradores, impedidas de possuírem terras pelo fato de estas estarem ocupadas para especulação sendo mantidas improdutivas, possuírem tais terras e com elas sustentarem suas famílias. Enxurradas de bandeiras vermelhas com foices e martelos corriam pelas ruas das grandes cidades. Marchas eram organizadas trazendo repercussão para a mencionada injustiça.

Desde os anos de minha infância e adolescência para cá o mesmo MST - e alguns movimentos correlatos - mudou gradativamente seu modo de agir: as passeatas tornaram-se menos expressivas enquanto que fazendas passaram a ser invadidas e depredadas: lavouras destruídas, gado morto, sede vandalizada. Ora, pergunto: se há lavouras e gado a se obliterar, onde está a improdutividade?

Lembro-me ainda da pesquisadora chorando, lamentando seus anos de pesquisa perdidos pelas mãos de mulheres com rostos cobertos que quebraram seu laboratório e destruíram suas plantas. Uma vida de pesquisa e dedicação soprada como poeira – dedicada em vão: suas perguntas não seriam respondidas. Em minha matemática: plantas + pesquisa = produção. Mais uma vez, onde está a improdutividade?

Vi ainda as escolas de acampamentos, famigeradamente sustentadas por dinheiro público, ensinando aos pequenos qual a causa certa pela qual matar ou morrer.

Quando pensei terem eles chegado ao máximo da ilegalidade, mais um crime foi acrescentado à sua lista de práticas abjetas: o assassinato - como se pôde ver no caso dos vigias contratados para defender uma fazenda que seria invadida – e por isso foram mortos a tiros. Estariam eles em lugar não apropriado em hora indevida?

Sinceramente tenho me perguntado quando os ônibus e prédios começarão a explodir matando aqueles mesmos incautos passantes-da-hora-e-lugar-errado, pois estes movimentos estão, com mudanças sutis implementadas ao longo de anos, começando a se encaixar na minha definição de terrorismo.

Surreal! Como eu exclamava em meus tempos de adolescência quando queria me referir a tudo que fosse muito estranho e inesperado.

É óbvio que não quero dizer que a reforma agrária é desnecessária – muito pelo contrário. Reafirmo que é justo que às pessoas seja dado o direito de retirarem seu sustento da terra em detrimento do uso da mesma para especulação com sua consequente manutenção em estado de improdutividade. Em contrapartida, também é justo que pessoas que possuam pequenos ou largos pedaços de terra e os utilizam para seus fins particulares – que sejam legais e produtivos – tenham seu direito assegurado. O direito dos últimos de possuírem terras, não interfere no direito dos primeiros de acesso ao seu sustento.

E assim foi que, finalmente, o impasse entre “propriedade” e “coletividade” se resolveu na minha cabeça: pelo caminho do meio, como já filosofava um certo oriental.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

Crônica: Injustiças nossas de cada dia

Muitas vezes não damos importância ao que vemos escrito ou divulgado em propagandas porque as consideramos apenas o “enchimento” do espaço entre as partes do jornal ou da revista, ou do tempo de um programa televisionado/irradiado. Arrazôo que deveríamos proceder diferentemente.

Oras, por que, já que mal prestamos atenção neles, exceto quando são engraçadinhos (como os de algumas cervejas) ou quando contenham mensagens emocionantes (como os de sabão em pó)?

Analisemos: qualquer pessoa com um mínimo de esclarecimento já percebeu que os tais anúncios são direcionados a públicos específicos cujas características são inferidas segundo o alvo da programação principal. Por exemplo: durante programas infantis vêem-se anúncios de lojas de brinquedos, artigos infantis e demais produtos voltados a este público. Já durante a programação noturna, observam-se reclames que se dirigem aos adultos já que são eles que comumente monopolizam a telinha neste período do dia. A mesma lógica é usada quando da decisão com relação à qual página anúncio de determinado produto vai ocupar.

Pensando neste público, o visado para seus produtos, aqueles que encomendam a confecção das propagandas tentam atingir o leitor, telespectador ou ouvinte de forma a convencê-lo a eleger seu produto, de um rol de outros oferecidos, para gastar seu dinheiro. Para isto usam da função apelativa – que nada mais é do que o nome técnico da linguagem apropriada para convencer.

Tendo tal fato em mente, analise-se uma propaganda veiculada no jornal de maior circulação da cidade onde moro. Era uma propaganda relacionada ao transporte urbano e me deixou absolutamente indignada. Tal propaganda trazia estampada uma foto dos coletivos e dizeres que davam a entender que os preços caros das passagens deviam-se aos usuários do serviço que são isentos de pagamento.

Ou seja, tal anúncio colocava-se frontalmente contra a Constituição, que garante gratuidade de transporte a idosos. Ainda afronta leis estaduais e/ou municipais que garantem a gratuidade para deficientes. Na verdade, usando da função apelativa de maneira muito pouco ética, o responsável pelos anúncios posicionava-se ideologicamente tentando convencer ao leitor incauto de sua ideologia: o direito de gratuidade garantido por lei tratava-se não de direito, mas sim de abuso e, por causa deste abuso, a sociedade de uma maneira geral era penalizada já que deveria pagar preços mais caros pelo transporte.

São óbvias as conseqüências implícitas em tal veiculação, especialmente considerando-se que nem todas as pessoas possuem senso crítico para diluir esta propaganda ao que ela realmente é: algo ilegal e injusto.

E o pior, a postura deste grupo responsável pela contratação da propaganda, é a mesma demonstrada pelos funcionários da empresa de transportes urbanos de Conselheiro Lafaiete - MG: deixar claro que aqueles que não pagam passagem o fazem por benesse desta companhia e não pelo direito e por força da lei. Ora, certa vez ao pegar o ônibus presenciei a cobradora exigir dinheiro de um senhor já que seu famigerado cartão de passe gratuito havia já sido usado seis vezes durante o dia e estava bloqueado. Este cartão trata-se de um artifício usado por esta empresa para controlar a quantidade de vezes que um idoso ou deficiente pode fazer uso do transporte público. É obvio que intervim. Disse ao senhor, de aparência muito simples e que tentava se explicar à cobradora dizendo que havia precisado ir ao médico levar exames, o que ele deveria fazer: mostrar sua identidade para comprovar sua idade. Se qualquer um o tentasse impedir de usar o ônibus tendo comprovado sua idade, que ele acionasse a polícia. A gratuidade era seu direito, afinal.

Este mencionado acontecimento e a mensagem da propaganda fazem-me imaginar um cenário onde todos, indiscriminadamente, pagam as passagens. Faz mesmo parte das possibilidades a diminuição do preço da passagem como contrapartida ao fato do aumento da aquisição de renda por parte das empresas de transporte? Para se chegar a uma resposta, basta lembrar algumas altas e baixas em preços e usá-los como exemplo: o petróleo sobe, os combustíveis sobem, todos os produtos que necessitam de transporte sobem, tarifas de ônibus sobem. E quando o preço do petróleo cai, caem todos os outros em cascata inversa? Apenas os mais inocentes acreditariam mesmo na possibilidade da baixa de preços como resposta – exceto em tempos de crise e recessão técnica como agora, com cortes em impostos e taxas de juros, junto com ameaças de falências múltiplas é que se veem redução de preços...

Ainda, em tempos em que se discutem a coerência ou não de se criarem novas leis para se regulamentar a imprensa e quando se observam donos de jornal e de grandes veículos de comunicação dizerem que os meios de comunicação sob sua responsabilidade se autorregulam é assaz interessante deparar-se com uma propaganda desta. Ela sugere o contrário – que nem todos são capazes de se autorregular, controlar, julgar uma vez que, é importante que se lembre, os interesses monetários regem a veiculação de propagandas.

Não se quer dizer, obviamente, que tais interesses sejam escusos: eles movem o capitalismo – sistema que, na falta de outro melhor, serve. Entretanto, a responsabilidade e a ética devem, ou pelo menos, deveriam estar acima destes e de quaisquer outros interesses, especialmente com relação àqueles que são responsáveis pela educação, política, assim como por meios de comunicação. Há que se preocupar com a carga ideológica veiculada e que chega a todos os tipos de ouvidos e olhos: cultos ou incultos, com senso crítico ou sem ele.

E mais, considerando-se que os padrões morais e éticos de grande parte da população são regidos pela “novela das oito” deve-se zelar ainda mais pelo que é transmitido. O ideal seria, na verdade, que a população, quando se visse afrontada por propagandas tais, manifestasse-se por escrito à redação expondo que não deseja ver o espaço do jornal que compra poluído por ideologias injustas e ilegais. Se tal persistisse, que os leitores fizessem uso da ferramenta mais poderosa que possuem: o poder monetário e parassem de comprar tal jornal ou assistir a tal canal de TV – mas aí, estaríamos nadando de braçada na utopia.

Pois bem, até que a utopia se materialize, conclamem-se os meios de comunicação para uma postura de maior responsabilidade.

Chamem-me de idealista, é o que sou.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Crônica: Morreremos jovens

Muitas vezes me perguntei se as pessoas estão cientes da passagem do tempo e do que ela significa. Tempo no sentido imediatista e também no amplo. Tempo este da experiência, mas também das rugas, linhas de expressão, marcas na pele que começam a surgir por todo o nosso rosto e corpo – o incrível é pensar que são estas as marcas que mais afetam nossa sociedade egocêntrica e individualista.

Explico-me: o sentido imediato das marcas da passagem do tempo em nosso corpo para aqueles com dificuldade de enxergar além do próprio umbigo soberano é: Precisarei de nova maquiagem ou novo kit de rejuvenescimento. Uma lipo para “curar” as gordurinhas, talvez? Esclareço antes de polemizar: não possuo absolutamente nada contra tratamentos de beleza ou rejuvenescimento – desde que você não se esqueça de manter jovem e cuidar do que vem por dentro também, não apenas da casca.

Já no sentido amplo, todas estas marcas que se acumulam ao longo dos anos significam que nós estamos envelhecendo e que, se tudo der certo, ficaremos idosos dentro de alguns anos. Idosos como aquela senhorinha que demora séculos para atravessar a rua, parando o trânsito e outro século para contar seu troco no ônibus, impedindo a fila.

Sim, ficaremos velhos, cansados e limitados fisicamente e, muitas vezes, intelectualmente. Digo isto como novidade porque a certeza mais intrigante que tenho vem da minha observação das pessoas e suas atitudes. Esta certeza é a de que os seres humanos se esqueceram de que o envelhecimento, por ser um processo natural da vida, acomete a cada um de nós – a você leitor, a mim, ao meu vizinho, amigos e inimigos – a todos.

Sei que não é exercício dos mais agradáveis ter a consciência do próprio fenecimento e exercitá-la – eu mesma odeio pensar no assunto. Em especial, odeio pensar que, junto com a velhice vem a dificuldade de movimentos, carência dos sentidos, dependência (por muito ou pouco tempo até o “canto do cisne”, dependendo da saúde de cada um, mas ela é inevitável).

Entretanto, vejo que apesar de doloroso, este é um exercício necessário: lembrar que seremos velhos um dia, já que as pessoas andam meio esquecidas.

Exemplifico: há alguns anos moro em Conselheiro Lafaiete-MG, cidade de médio porte que fica a cerca de 90km de Belo Horizonte. Pois bem, ao voltar de uma das escolas onde leciono alguns dias atrás, estava parada em um sinal movimentado do centro da cidade. A avenida possui seis pistas e é margeada por uma segunda rua de duas pistas, ou seja, somando-se: oito pistas a serem atravessadas. Ali mesmo, pouco a frente, e sobre a faixa de pedestres vi um policial militar que sinalizava com a mão e trazia pelo braço uma senhorinha encurvada já, com o peso da idade. Estava bem esperta ainda, mas, obviamente, seus passinhos eram curtos. Eles atravessaram as seis pistas da avenida e estavam cruzando meia rua quando o sinal abriu. O policial estendeu o braço com o intuito de deixar mais claro que continuaria a travessia com a senhora. Óbvio! Claro! Alguém imaginaria que os dois ficariam parados no meio da rua com os carros passando de lá e de cá?

Porém, por incrível e absurdo que pareça, mesmo tendo uma velhinha de passinhos curtos e um militar sinalizando com a mão, vários motoristas simplesmente avançaram impedindo a passagem dos dois. O fluxo de carros teria continuado sem que ninguém permitisse a passagem deles se o policial não tivesse se postado abruptamente na frente de um dos carros bloqueando sua passagem e ficando de pé na frente do mesmo para que a segunda pista pudesse ser atravessada pela senhora.

Dantesco? Surreal? Não... Fato corriqueiro para minha máxima tristeza: motoristas acelerando em ambos os lados impedindo a passagem de maneira assustadora. Isto porque ambos, militar e doninha, estavam sobre a faixa de pedestres, no meio da travessia.

Este e outros fatos semelhantes são os que me fizeram crer que as pessoas são, além de filhas de chocadeira, indivíduos que morrerão jovens. É impossível conceber que nenhum daqueles motoristas consiga ver na senhorinha passante sua mãe, pai, avó, avô ou a si mesmo dali a alguns poucos ou muitos anos.

Mas, como já ouvi muitas vezes “velho tem que ficar em casa!”. Pois gostaria de ver se você, ao ficar velho, quererá ficar apenas em casa sendo direito seu movimentar-se livremente. Ainda vivemos em uma democracia e temos como direito assegurado nossa liberdade de ir e vir, pois sim? Afinal, não me lembro de ter lido em lugar algum que tal liberdade é assegurada apenas aos jovens e de movimentos serelepes.

Ao olhar as pessoas e suas ações, apenas consigo concluir que todos anseiem o fim de James Dean.

O que sei é, ao ver a forma como alguns tratam a estas pessoas, apenas consigo articular minha esperança de ensinar valores melhores ao meu filho – torcendo para que ele os aprenda e saiba que se não é pelo fato de que qualquer ser humano deve ser respeitado que ele tratará condignamente os mais velhos, que seja pelo menos, por pensar que ele desejará igual respeito quando suas próprias costas se encurvarem e as cãs cobrirem sua cabeça.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Conto: Olhos Vermelhos

Era apenas mais uma noite.

Uma noite um tanto quanto sombria, é verdade, mas apenas uma noite.

A lua cheia ia alto no céu escondendo-se atrás de um véu de nuvens cinzentas e, por vezes, revelando por completo sua face mortiça. Sombras e vultos brincavam de esconde-esconde pelos cantos dos olhos dos pouquíssimos passantes. O bafo gélido da noite recebia àqueles que a desafiavam com um beijo cortante.

- “Calma menina, é só a madrugada que está um pouco fria”... – pensou Priscila imediatamente começando a cantar tentando fazer com que o som da própria voz lhe acalmasse os nervos.

Tudo em vão: o vento assobiava em seus ouvidos canções doentias demais para que ela conseguisse controlar-se.

Apertando o passo em direção à “pensão familiar” onde dormia, a prostitua tentava pensar na mãe e nos irmãos do interior que dependiam dos poucos tostões que conseguia dos clientes na Praça Rio Branco. Não crescera para isso – o meretrício não fora seu alvo ao desembarcar há dois anos na rodoviária da capital – fora sua única opção. Seu pai havia morrido e cinco crianças dependiam dela agora, ou seja, Priscila não podia dar-se ao luxo de escolher o que fazer, se ninguém havia aceitado seus préstimos como empregada, paciência.

Como não era especialmente bonita, nem inteligente, o que lhe restara era tentar ocupar um espaço naquela maldita praça desde as nove horas da noite fazendo pequenos programas com quem quisesse pagar-lhe, pelo menos, cinco reais. Alguns clientes fixos ela conseguira, mas estes lhe rendiam pouco por semana. A maior parte de seu dinheiro vinha daqueles desconhecidos – cinco ou seis por noite – que ela levava para um passeio de, no máximo, quarenta minutos em sua cama. Homens dos quais ela mal conseguia lembrar-se do rosto, ou se eram bons, maus ou tristes – eram apenas seus clientes – iam e vinham ao sabor da ocasião.

Mas, de seus irmãos e de sua mãe ela se lembrava – de fato, não os esquecia jamais. Era em suas expressões, em seu riso e em seu choro que ela pensava quando alguém a possuía com maior brutalidade magoando-lhe a carne surrada levando-a, às vezes, a sangramentos advindos de feridas doloridas que, ainda assim deveriam ser ignoradas no exercício de sua profissão, pelo bem dos seus. Seus pequenos eram a única motivação que a levava dia após dia a atravessar ruas escuras e perigosas com roupas mínimas atrás de homens com pouco dinheiro e muitas perversões, mesmo em uma noite tão sombria.

Toc, tic, toc – era o som de seus saltos gastos batendo contra as pedras da calçada. Toc, toc, toc sons de outros passos misturam-se aos seus e parecem ecoar com a força de batidas em um sonoro tambor no silêncio frio da noite. Ela decidira ficar até um pouco mais tarde com um coitado que lhe oferecera quinze reais pela realização de uma fantasia obscura e dolorosa – para ele, não para ela. “Jamais entenderei essas pobres criaturas”.

Agora, ao voltar do programa que se desenrolara em um hotelzinho próximo à escola Silviano Brandão, encontrara essa noite aziaga enquanto solitariamente dirigia-se para o local onde passava a noite – um pardieiro na virada do viaduto onde se ela não tomasse cuidado, quem passava nos carros do lado de fora veria sua intimidade naquele quartinho fétido onde ela tinha seus únicos momentos de privacidade.

Priscila apertara seus passos – sua função estava encerrada por hoje, mas os outros passos insistiam em acompanhar os seus. Ela pára e vira-se repentinamente já com uma resposta ferina nos lábios para dar àquele que, com certeza, queria ser seu último cliente, mas, ninguém estava lá. Apenas a calçada, a rua Itapecerica deserta, lojas fechadas. Maria Aparecida – seu nome de batismo, Priscila era apenas o nome de guerra – aperta instintivamente a navalha que sempre trás enfiado no sutiã, entre os seios.

- “Não é nada, menina, é só essa noite maluca mexendo com você”. – disse ela voltando a andar.

Toc-tocs mais apressados fazem-se ouvir no silêncio macabro da noite fria e a entrada da passarela que liga o bairro São Cristóvão ao centro já é visível em meio à penumbra causada por algumas lâmpadas queimadas nos postes próximos. Priscila quase corria.

O som do salto de sua bota batendo contra o concreto frio parece agora mais seco e menos assustador. Ela atravessa a passarela escura e fétida apressadamente enquanto um gato preto lambe languidamente os últimos resquícios de sua deliciosa refeição morna e ensangüentada das patas e a lua mostra claramente sua face esbranquiçada.

Subitamente, um estalido contra o chão. O gato que deliciosamente lambia suas patinhas pretas pula num salto suicida para o lado de fora da mureta emitindo um som aterrorizante. Um predador dominante acabava de iniciar sua caçada fazendo ressoar no silêncio suas passadas inumanas.

A jovem meretriz – ela tinha apenas dezenove anos – sente o sangue gelar e um frio característico subindo-lhe a espinha até o centro do cérebro. Seu instinto de preservação aguçado dia a dia naquela vida incerta aprendera a emitir-lhe sinais bem claros em situações de perigo.

Ela começa a correr desabaladamente. Lembrava-se muito bem das histórias da vó Lica sobre as criaturas que andavam livremente em noites como aquela atrás de vítimas para saciar sua sanguinolência implacável. Imagens do grande porco/homem contadas por sua avó vinham a sua mente, enquanto ela, sem perceber gritava os nomes dos santos dos quais se lembrava para afastar a possível “visagem” – mas não olhava para trás. Não ousava olhar para trás.

Súbito, os passos pesados param... Priscila nem nota... O vento cortante assobia mais forte... “Será que essa passarela não tem fim?”... A lua brilha mais intensamente no céu... Um ganido gutural e assustador corta a noite... “Alguém me ajude!”... O beijo da noite torna-se então, ainda mais gelado... Duas pernas doem beirando a exaustão... “Eu preciso continuar!”...

Priscila, no ápice da exaustão e do horror começa a pensar que é seu fim – “o que vai ser dos meus irmãozinhos?” – quando, finalmente, um vulto humano surge à sua frente – possivelmente um homem. A prostitua sente a esperança começar a renascer e, num súbito esforço, faz com que as forças voltem ás suas pernas já amolecidas pela explosão iniciada pelo pânico. Novo impulso é dado ao seu corpo, enquanto a sombra humana se aproxima mais e mais.

Exausta, aterrorizada, mas finalmente sentindo-se segura, a mulher finalmente cai desmaiada nos braços do desconhecido que sorri, sinistramente, do fundo de seus olhos vermelhos.

Conto: Ele

Publicado como participação especial no jornal "Conhece-te a Ti Mesmo". Publicado na edição 98/2009

“De novo não... Desta vez eu não vou”.– Pensei firmemente tentando tirar da mente a minha obrigação de todas as semanas. “Não e não” – disse para mim mesmo mais uma vez.

Mas era incontrolável. O senso de dever me obrigava a partir e simplesmente fazer o que tinha que ser feito. “Mas como? Que senso de dever? Ninguém deveria ter uma obrigação como esta!” Mas a obrigação era minha e eu não tinha como escapar. “Mas não, não quero mais... Ninguém vai me obrigar a isto!” Mas, lá dentro eu tinha certeza de que Ele podia. Por Ele eu faria tudo. Eu não agüentaria aqueles olhos vermelhos me perscrutando e dizendo que se eu não cumprisse a minha parte do acordo ele se cumpriria em mim... O que isto quer dizer? Eu, até hoje, não ousei descobrir.

Pois é. Ele sempre me ameaçava. Ás vezes eu já tinha até pensado que era melhor eu deixar-Lo fazer comigo o que quisesse. Você sabe, a dor na consciência é a pior das dores – e a minha está doendo tanto que tem dias em que eu não consigo nem dormir. E nos dias em que durmo os rostos delas vêm me visitar e cobrar o destino que eu lhes dei: demoradamente doloroso e triste. “É verdade, é verdade – eu sei que eu demoraria só uma semana para morrer e que Ele devoraria aos poucos minha carne começando da pele até chegar ao esqueleto e que depois eu teria o descanso eterno...” Descanso eterno – esta expressão sempre me incomodou: como o padre podia ter tanta certeza? Ele mesmo nunca tinha estado lá! Mas se bem que depois de tantos anos uma semana de sofrimento não apagaria os meus pecados. Tenho quase certeza que se eu deixasse que Ele fizesse aquilo comigo eu queimaria no canto mais quente do inferno com Belzebu em pessoa me torturando pela eternidade. Mas, pensando bem, isto eu poderia suportar... O que eu não suportaria é desagrada-Lo – isto sim seria o fim.

“Aí, ta vendo! Voltamos ao mesmo lugar! Para não desagrada-Lo eu tenho que cumprir meu acordo. Tá bom, quem vai ser desta vez? Ah, é... Ele já tinha até escolhido a moça: era aquela do banco – a loira de cabelos compridos, olhos verdes e lábios vermelhos. É, eu tinha que reconhecer que o desgraçado tinha bom gosto.” Todas elas eram realmente princesas. Mas ele era assim: apenas as melhores teriam o privilégio de se tornarem as Princesas Ocultas e ter os seus rostos enfeitando a parede da Sala das Ocultas. Tá, tá certo que ninguém podia ir àquele quarto a não ser Ele e eu. Mesmo assim, eu só tinha permissão de entrar lá quando ia levar os novos rostos para compor o mural. E era lindo! Cada uma das princesas que eu havia atraído e trazido para aquela casa tinha o seu lugar para ser amada e adorada para sempre. É claro que elas gostavam: quem não gostaria de ser adorado? É, é claro que elas demoravam um pouco a serem convencidas: na verdade elas só diziam que sim quando paravam de gritar. E como elas gritavam - mas a dor purifica. E elas, no final ficavam tão puras que tenho certeza que as alminhas delas estavam lá no paraíso.

Mas, se elas estavam no paraíso, por que apareciam como pavorosos diabos em meus pesadelos? Lá elas me perseguiam como corvos agourentos gritando que eu era o culpado – eu tentava explicar que a culpa não era minha era Ele! Só Ele era o culpado! Ele me obrigava a atrair as pobres moças e Ele as fazia gritar. Ele! Ele! Não eu. Mas eu acho que elas me confundiam com Ele porque Ele se parecia muito comigo – coisas do sangue, é claro. Mas nós não éramos a mesma pessoa apesar de até eu mesmo duvidar disto de vez em quando.

Mas hoje eu estava decidido a parar, eu ia falar. Ia gritar se preciso! “Não vou mais trazer ninguém! Se você quiser mais Princesas saia daí e vá buscar você mesmo!” – Ah, ele vai ver comigo. Eu vou sair daquela casa e nunca mais vou aparecer.

E pisando com passos duros Eu seguia pela rua indo se encontrar com Ele. Quem o via na rua diria que se tratava de um homem jovem, de aparência forte e de feições hora decididas, hora tomadas pelo medo, hora tomadas por prazer. Eu parecia não se importar com nada nem com ninguém. Parecia ter um objetivo - seus olhos eram os que denunciavam tal decisão: duros, frios na maior parte do tempo. Mas, Eu era muito bonito. Poderia ser um sucesso com as mulheres.

Biiiiiiiiiiiii – quase atropelado! Sua decisão era tanta que Eu nem tinha olhado o sinal da avenida mais movimentada da cidade. Em um ágil salto ele se pôs novamente na calçada e cambaleou.
- O senhor está bem? – Era morena, jovem, grandes peitos e um lindo nariz – o
mural ficaria contente... – O senhor quer que eu ligue para alguém?
- Não, não. Acho que foi o sol. Já estou melhor. – “Ah, não. Eu aqui decidido a
não fazer mais isto e ela aparece – só pode ser um sinal... Mas de Deus ou do Diabo?”... Não, não posso mais pensar nisto. Nem vou falar com Ele que a vi. Meu assunto com Ele hoje são algumas boas verdades que vou lhe lançar na cara, ah, isto sim!.. Mas, se bem que não tem problema se eu a ficar olhando... Só saber onde ela trabalha, ou mora... Tão bonita, tão educada!

Ah, então é ali... Na livraria... Ela deve ser culta... Ia ficar bem ao lado da jornalista... Não, não e não! Não vou pensar nisto... Não posso me desviar do meu objetivo. Tenho que ir para o sítio agora e encara-Lo enquanto ainda tenho vontade e força suficiente para isto.


“Ei, onde você está? APAREÇA!” Ele já sabe o que eu vim fazer aqui... Ele sempre sabe tudo o que eu penso... Não é possível que Ele não vai aparecer logo hoje... “APAREÇA, DESGRAÇADO! A GENTE TEM QUE CONVERSAR!” Não, assim não ficou bom, submisso demais: o que Eu sou? Uma tia velha? “APAREÇA, DESGRAÇADO! EU TENHO QUE TE FALAR UMAS COISAS!” Melhorou. Mas será que Ele vai ficar ofendido? Será que Ele vai ficar nervoso comigo? Não... Pensamento errado... Tenho que ficar calmo e me concentrar... Não posso deixar Ele me convencer e muito menos posso contar para Ele da morena da livraria.

“Quem?”

“Ai, Cristo”...Ele ouviu meu pensamento de novo! Ou será que eu é que falei alto e nem percebi? “Ninguém”!

“Eu ouvi perfeitamente você falando de uma morena linda e culta que ficaria bem ao lado da jornalista” Ai, aquela voz me matava. Melodiosa e ao mesmo tempo firme e cortante como uma lâmina. Mas eu tenho que ser firme!

“A-HA! Não falei nada de jornalista!” Ou será que falei? Já não tenho certeza! Como eu posso ser tão burro?

“Mas o que importa se falou ou não? Eu sei. Eu sei de tudo, seu idiota! Você esqueceu que eu te conheço melhor que você mesmo?”

Ai, não... Não posso deixar que Ele domine a conversa. Tenho que falar alguma coisa... “Eu vim dizer...”

“Dizer o quê, seu lixo?”

“Não fala assim comigo! Eu sempre fiz tudo o que você mandou!”

“Agora sim é o meu amigo de sempre... Aquele que faz T-U-D-O o que eu mando... Você sabe que é especial para mim, não sabe? Você sabe que me ama e que eu te amo, não sabe?”

“Não é disto que eu vim falar! Eu vou embora!” Ah, não... Os olhos dEle estão ficando vermelhos... Aquela sombra está novamente cobrindo o rosto dEle... Ah, não... Ele está entrando no quarto... Tenho que correr! De novo não!... Mas minhas pernas estão presas no chão...Não consigo movê-las! Tenho que ir... Tenho que fugir!! Mas estas pernas desgraçadas não me obedecem!

“Você sabe que eu não gosto que você seja malcriado, não é?”

Ai, quando Ele começa a falar assim eu sinto aquele líquido quente descendo do meio das minhas pernas. “Não, claro que não é mijo! Só um covarde mijaria assim!” “O que é, então? É isto que você está me perguntando? Não te interessa”!

“Você sabe que eu não gosto que você seja malcriado, não é? Meninos malcriados têm que receber o castigo, você sabe?”

E a próxima coisa que eu ouvi foi o barulho do couro rasgando as minhas costas e um grito de dor. Mas este grito não era meu. Na verdade eu nem sei o que estava acontecendo ali.
A próxima coisa de que me lembro era de um restaurante, música romântica, uma linda loira: parecia um anjo. Um pó na bebida – muito leve só para atordoar porque Ele gostava que elas estivessem bem atentas na hora da purificação. O carro, a estrada, a porteira, a casa, a porta e Ele.

Maravilhoso era Ele – meu pai, meu irmão, meu amigo, meu Deus. Vestido com sua roupa branca alvíssima e sua capa negra e vermelha um sorriso nos lábios e uma adaga-ritual nas mãos.

“Quem adentra meus domínios?”

“Um pobre servo que te traz um tributo”.

“Pão e vinho?”

“Sim, puro pão e puríssimo vinho”...

Gritos! Gritos! Ah, não consigo dormir! Por que Ele me obriga a isto?



“Mas eu não posso mais... Por que, meu Deus? Por quê?” Era quase tudo o que as árvores do bosque negro e denso podiam ouvir – É... As árvores têm ouvidos sabe? Principalmente os Salgueiros e os Carvalhos como aqueles que a mãe da minha bisavó tinha trazido da Sagrada Bretanha.

Além disto, havia também o choro convulso de um belo rapaz sobre um pequeno túmulo no meio das velhas árvores onde se podia ler sobre a pedra: “Aqui dorme J. S. C., filho de A.S.C., herdeiro legítimo da Adaga, irmão gêmeo de P.S.C. que ainda vive e muito viverá para servir e obedecer e cumprir”.


... Está feito: mais um rosto para pendurar na sala... O lugar vago perto da jornalista logo será ocupado também. Só para Ele.

“Ou seria para mim?”

Artigo: O Corvo e seu tradutor (in)visível

Coluna Prosa e Literatura, parte integrante do jornal "Conhece-te a Ti Mesmo". Publicada na edição 99/2009

Nesta coluna sobre literatura objetivar-se-á comentar livros, contos, poesias – sejam estes de autores conhecidos do grande público ou não, permeando vários movimentos literários sem restringir-se especificamente a este ou aquele.

O foco, pois, é explicitado no título desta coluna: Prosa e Literatura. Aqui, tratar-se-á a Literatura como se deve e da maneira como ela primeiro surgiu: como uma prosa – que tanto pode ser sinônimo de conversa amigável, ou uma das maneiras de se escrever – aquela diferente da poesia, ou seja, romance, conto ou novela. Afinal, não se deve esquecer que a ficção surgiu da oralidade, primeiramente, até evoluir para a escrita e os livros.

Desta forma, para que nossa prosa inicie-se bem interessante, falaremos sobre Edgar Allan Poe, escritor americano romântico/gótico do século XIX, que certamente produziu muitos assuntos para ótimas conversas. Ele é tido como um dos iniciadores da literatura de investigação e em sua obra ultrarromântica via-se a presença do oculto, do inexplicável. Ele explorou ainda muito bem o que há de pior na alma humana: egoísmo, sadismo, vingança. Para os amantes do gótico como eu, é um autor de cabeceira cuja obra se revisita de tempos em tempos. Uma de suas poesias de minha predileção é The Raven (1845) - no português O Corvo - tema deste artigo.

Poe era estadunidense, sendo assim, para aqueles não falantes da língua inglesa seria impossível deleitarem-se com a leitura de sua obra. É aqui que entra o papel do tradutor, que, quando é realmente bom, aos olhos leigos, passa-se por invisível. Convém ressaltar, entretanto, que, segundo estudiosos, quanto mais “visível” o tradutor – mostrando-se atuante e hábil, melhor será sua tradução já que ele conseguirá transformar o texto original de forma a que este seja lido e compreendido por outra cultura, em outro idioma. Esta naturalidade é o que faz uma boa tradução. (Alvamar Lamparelli, 2007).

Há duas traduções muito conhecidas de The Raven – uma feita por Machado de Assis e outra feita por Fernando Pessoa, ambas intituladas O Corvo.

A poesia trata de um homem atormentado pela perda de sua amada Lenore. Em uma noite, enquanto lê sobre artes esquecidas, um corvo invade sua casa e repete apenas “Nunca Mais” como resposta a todas as indagações feitas a ele por seu interlocutor sobre sua amada morta. O corvo pousa sobre o busto de Pallas (traduzido por Atena), a deusa da sabedoria. Veem-se óbvios elementos góticos no texto como a temática da morte e a alma amargurada pela perda do ser amado e também pela falta de esclarecimento quanto à pós-morte.

Entretanto, apesar da preservação da temática nas traduções mencionadas, ao cotejarem-se as duas com o original vê-se que os resultados finais diferem muito – ao passo que a de Machado é Machadiana; a de Pessoa parece-se mais com o que o autor, no caso Poe, escreveria se pudesse fazê-lo segundo a “última flor do Lácio”, inclusive estruturalmente.

Exemplifica-se: no poema de Poe, em cada verso, veem-se oito pares de sílaba tônica-sílaba átona, o chamado troqueu de oito pés (a métrica da poesia na língua inglesa leva em consideração a tonicidade das sílabas).

Em sua tradução, Machado utilizou-se de octossílabos (versos de oito sílabas poéticas, à maneira da contagem normalmente usada em línguas latinas – nas quais se considera a velocidade da enunciação das sílabas e não sua tonicidade). Já Pessoa compôs seu texto usando os mesmos versos troqueus de Poe. Ainda, a rima na poesia do americano faz-se por combinação ABCBBB – a mesma utilizada pelo escritor português. Já o brasileiro optou por uma combinação AABBCCDEDE – o que indica que ele modificou a disposição dos versos e a quantidade dos mesmos nas estrofes. Em acréscimo, Pessoa procura repetir palavras nos mesmos lugares em que Poe repetiu: enquanto o americano repete “door” o português repete “umbrais”, por exemplo. As aliterações também foram cautelosamente alocadas por Pessoa de forma que ele, de maneira habilidosa, manteve ritmo, métrica e esquema de rimas do poema original conseguindo a almejada naturalidade na língua portuguesa. Estruturalmente, portanto, as duas traduções, apesar da temática, são absolutamente díspares e apenas a de Pessoa mantém a forma desenvolvida por Poe.

Sendo assim, observa-se que, mesmo quando se comparam dois mestres da língua portuguesa, um deles produziu melhor resultado em se tratando da tradução desta poesia específica. Isto demonstra como se deve ser cauteloso ao escolher não apenas o autor de uma obra estrangeira, mas também o tradutor desta obra. A influência do tradutor com sua (in)visibilidade é determinante para o bom resultado.

Assim, se você decidir prosear com Edgar Allan Poe e sua atmosfera gótica, escolha traduções que realmente sejam capazes de apresentá-lo o mundo obscuro, doentio, maquiavélico e complexo deste autor, com todas as suas cores – e prepare-se para mergulhar na penumbra.

(Se desejar algum esclarecimento maior sobre esta prosa, não deixe de me contatar por e-mail.)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Crônica: Meus problemas são maiores

Andando pelas ruas de qualquer cidade de médio ou grande porte é impossível que não se notem quantas pessoas cometem pequenos ou grandes atos de falta de educação. Por tais atos, não me refiro ao fato de que as ditas palavrinhas mágicas, como “por favor” e “obrigado”, estejam em franca extinção – o que já é ruim o bastante.

Antes, refiro-me a outros atos mal-educados como: estacionar em fila dupla, estacionar em local proibido, fechar o trânsito, jogar o carro sobre pedestres que atravessam sobre a faixa, etc.

Que me importa se outros querem passar, ou se o pedestre tem a preferência sobre a faixa? – parece ser o pensamento geral.

Um causo exemplifica bem o que digo: certo dia, ao atravessar um cruzamento que dava em uma ponte estreita, tive que jogar o carro para a direita para aguardar um ônibus que atravessava a dita ponte. Parei logo atrás de outro carro, de forma a não fechar o cruzamento. Um amigo do motorista chegou à janela para cumprimentá-lo – e o coletivo atravessando. Quando o mesmo seguiu seu caminho, qual não foi minha surpresa ao ver que o motorista em frente ao meu carro permaneceu, calmamente conversando com seu amigo – enquanto eu era obrigada a ficar parada aguardando. Ao dar marcha ré para conseguir sair dei um toque de atenção na buzina. Ao fazer isto, fui brindada com um olhar por parte do motorista que dizia claramente: que mulher sem paciência!

Vejam, pois, a minha falta de propriedade: a mal-educada sou eu que preciso seguir meu caminho e não quem para o carro para bater papo impedindo o trânsito. É claro que, segundo o ponto de vista do motorista empacado, a questão que ele tinha para debater com seu amigo, o “problema” dele, era maior que o meu. Eu e meus compromissos que aguardássemos sua licença.

Tal acontecimento que, infelizmente, não é uma exceção segundo pude continuar a observar, me levou a refletir sobre o que levaria adultos a agirem de forma tão irrefletida – com pouco caso ou total ignorância – quando estão claramente errados. A conclusão a que pude chegar é que a doença da qual mais padecemos não é o estresse – é sim, a falta de empatia.

A empatia é aquele sentimento que possibilita que você jamais faça a alguém algo que você não gostaria de sofrer, já que você consegue se imaginar no lugar do outro sofrendo as conseqüências de seus próprios atos. Em vez de empatia, o homem e a mulher modernos desenvolveram um novo sentimento ainda sem nome: uma aberração em nível de inferência e compreensão de mundo que dá a certeza inegável de que o seu problema e as suas necessidades são maiores do que o de qualquer outra pessoa – ou seja, não importa a situação, você estará sempre certo, já que jamais conseguirá se ver no lugar da outra pessoa.

Para quê estacionar o carro para conversar o meu assunto importante? – Quem vem atrás que espere, oras! Para quê sinalizar corretamente minhas intenções no trânsito se o que farei é óbvio? Para quê procurar uma vaga se eu vou apenas pegar meu filho na escola? Quem vier atrás pode esperar...

Para o ser humano moderno imaginar que quem está atrás possui compromissos e horários a cumprir, ou que não possui telepatia para adivinhar o pensamento e intenções alheias, ou que não possui filho nenhum para ficar preso em fila dupla na porta de uma escola, é muito: é um exercício hercúleo para quem possui “problemas” tão importantes a serem resolvidos.

Desta forma, na visão do homo sapiens tornou-se sábio entender que empatia é para ser usada quando assisto àquele filme bem triste e me debulho em lágrimas, ou quando me condôo com as criancinhas famintas na África ou no nordeste. Nestas situações, eu compreendo a penúria ou dor – as quais esqueço tão rapidamente quanto o desligar do monitor assim que eu aperto o botão. Mas quando a questão é aplicar a empatia no meu dia-a-dia, meus problemas são os que, de fato, contam.

Esta atitude é a equivalente a falar acaloradamente contra os corruptos em Brasília e, ao mesmo tempo, oferecer uma cervejinha para o guarda “esquecer” a multa.

O pecado, a corrupção e falta de bons modos estão no outro: o inferno é o outro – já dizia alguém. Quanto a mim, tudo posso, já que meus problemas são maiores que os de qualquer outra pessoa.
 
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