terça-feira, 14 de julho de 2009

Artigo: A Descoberta do Mundo Clariceano

Publicado no jornal "Conhece-te a ti mesmo", 101ª edição.

Neste último mês reli um livro que há tempos estava guardado na minha estante: A Descoberta do Mundo, de Clarice Lispector. Reli ainda com mais carinho que o normal já que minha edição foi presente de meu eterno professor e também amigo Paulo Antunes.

Este livro reúne as crônicas de Clarice para o Jornal do Brasil no período de 1967 a 1973 organizadas por Marlene Gomes Mendes. Seu título é homônimo a uma das crônicas, onde Clarice comenta como descobriu o sexo aos treze anos, em conversa com uma amiga a quem confessa que andara fingindo e que, na verdade, não sabia de que forma um homem e uma mulher se unem. Vê-se traumatizada pela forma como tudo lhe é explicado, mas encerra esta crônica deixando claro que a lição aprendida é que a “vida é bonita”.

Para que se compreenda a amplitude destes escritos, assim como sua interpenetração em diversos gêneros textuais, é interessante que se compreendam o que são crônicas. Estas são textos, que, normalmente, partindo de um fato, acontecimento real ou fictício servem de veículo para que o escritor, chamado de cronista, posicione-se e explicite sua forma particular de ver e apreender o mundo (ANTUNES, 2005). Observa-se, portanto, que o cronista se revela, já que é sua visão pessoal que norteia a tessitura do texto.

Sendo assim, Clarice, aos poucos, expõe-se mais e mais em seus escritos semanais.

Para quem admira a escritora e sabe de sua notória aversão à exposição de sua intimidade, vê em A Descoberta do Mundo um achado, já que é possível saber mais desta autora e de sua intensidade interior. Desta forma, a leitura desenvolve-se com um prazer quase voyeurístico, já que se tem, em determinados pontos da leitura, a impressão de que se lê um diário.

Não que a autora escrevesse em tom meramente confessional – porém, conforme ela mesma notou e comentou em algumas das crônicas, era impossível que ela resistisse à tentação de se abrir e contar de si, de seus sentimentos, inseguranças, medos e alegrias.

Convém acrescentar, porém, que, mesmo que os escritos de Clarice para o Jornal do Brasil sejam genericamente classificados de crônicas, eles não se resumem a isto apenas, uma vez que, além dos comentários sobre fatos, ela ainda permeia seus escritos com pequenas doses de ficção como em Calor Humano. Ali, em vez de uma crônica tradicional, vê-se uma historieta sobre uma mulher que está triste à espera de “um algo” que nem mesmo ela sabe precisar.

Considerando-se as revelações de si permeadas por pequenas doses de ficção, ainda é possível que se entenda um pouco mais como o eu da autora salpica suas narrativas: é o que acontece com A descoberta do mundo e A perseguida feliz. Na primeira, como mencionado, a autora fala de uma experiência que viveu ainda adolescente. Na segunda, a pessoa ficcional comenta exatamente as mesmas sensações pelas quais Clarice afirmou ter passado – ela faz uso, inclusive de palavras e construções semelhantes em ambos os textos. Como disse Clarice: “Narrar é narrar-se”.

Ainda, em outras semanas, Clarice “fala” com seus amigos, dirigindo-se diretamente a eles, muitas vezes por nome ou pelas suas iniciais. “Fala” com seus leitores e até mesmo publica uma carta de Fernanda Montenegro que se queixa da violência e da repressão contra a classe artística.

Há, em acréscimo, outro detalhe que, para mim, é dos mais deliciosos: através de crônicas é possível que se “reconstrua”, como em um quebra-cabeça, um retrato da época da escrita dos textos, pois, o cronista comenta muitos fatos fornecendo-nos suas impressões - a de uma testemunha ocular.

Assim, por Clarice, somos informados da dificuldade de estudantes ingressarem na faculdade pela falta de vagas, das passeatas de protesto contra este fato, do advento do cérebro eletrônico, da questão indígena, da necessidade de reforma agrária. Impressionante como determinados problemas permanecem os mesmos.

Tocante ainda a forma como ela refere-se à saudade que sente de Lúcio Cardoso: seu amigo, mentor e, segundo suspeita-se, seu amor platônico. Há uma crônica que tem o nome deste autor onde ela fala de seus sentimentos por ele até mesmo dizendo que “se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado”. Esta impossibilidade remete-se, provavelmente, à homossexualidade de Lúcio.

Destarte, A descoberta do mundo, devido às suas diversas características e abrangência, é um livro muito interessante para os que amam Clarice e para os que não a amam (odiar não é de fato uma possibilidade, neste caso). Serve, pelos mencionados motivos, até mesmo de porta de entrada para o universo clariceano para aqueles que ainda não tiveram o prazer de se deleitar com sua obra.

Crônica: Nunca matei ninguém

Publicado como reportagem de capa no jornal "Conhece-te a ti mesmo", 101ª edição.

Há oito anos aconteceu em Ouro Preto um assassinato que deixou a opinião pública chocada: uma jovem recebeu dezessete facadas em um cemitério local durante uma sessão de jogo de RPG (Role-play game). Este assassinato foi novamente notícia devido ao fatídico aniversário ainda sem culpados condenados.

Acompanhei, como muitos, o noticiário pela TV, à época da morte, chocada com a crueldade dos assassinos que durante uma espécie de ritual mataram Aline, cujo corpo foi abandonado sobre túmulos.

É, de fato, estarrecedor quão cruéis crianças, jovens ou adultos podem ser. Lembram-me famosa frase de Thomas Hobbes que, dia a dia, encontra novos e ampliados sentidos: “o homem é o lobo do homem”.

Quando do assassinato, as notícias sobre a jovem em Ouro Preto chamaram-me, em especial, a atenção devido ao destaque dado ao RPG como fomentador e formador de assassinos. Viam-se em todos os telejornais – respeitáveis ou não – livros e dados utilizados no mencionado jogo encontrado na casa de um dos rapazes suspeito do crime aviltante.

Tal destaque a este material provocou reações fortes de pais de meus alunos e da vizinhança: todos proibiram seus filhos de envolverem-se com este famigerado jogo que produz assassinos cruéis.

Para mim, foi inevitável a lembrança de meus tempos de adolescente quando eu mesma fui apresentada ao RPG. Eu ainda estudava e alguns de meus amigos conseguiram exemplares importados (que xerocaram) dos livros do Jogador e dos Monstros do AD&D (Advanced Dungeons and Dragons). Como eu já falava inglês (idioma em que se encontravam os livros) fui convidada a traduzir trechos específicos e, posteriormente, integrar o grupo. Nesta época, eu era uma das pouquíssimas mulheres que jogavam.

Começamos a conversar sobre o jogo e, ao ouvir nossas conversas que envolviam feitiços, batalhas, criaturas mágicas em uma ambientação medieval, os sinais de alerta na cabeça dos meus pais ligaram-se e, quase fui proibida de jogar. Como meio termo, eles exigiram que algumas sessões – pois assim se chamam as partidas – se desenvolvessem em nossa casa. Isto lhes mostrou que o jogo se tratava de algo deveras inofensivo.

Desde então, continuo jogando RPG, tendo conhecido inúmeros jogos além do D&D (em sua nova edição o AD&D reassumiu seu nome original Dungeons and Dragons). Passaram-se dezesseis anos e, certamente, posso afirmar com toda a convicção, que jamais matei alguém – nem com requintes de crueldade, nem sem.

Ora, mesmo que tal afirmação pareça absurda, considerando-se que há mais de década e meia tenho contato com este famigerado jogo, posso exibir minha ficha policial absolutamente limpa como prova de que jamais cometi crime algum. Pelo contrário – possuo uma vida absolutamente normal e ainda, junto com demais colegas educadores, sou corresponsável pela formação de jovens, já que sou professora.

!!!!!!!

Neste momento, faço uma pausa em respeito às expressões de surpresa que porventura tenham surgido nos rostos de leitores incautos.

Posso afirmar como jogadora experiente e mestre de alguns sistemas (o que significa que eu gosto de inventar as estórias ao longo das quais meus amigos se divertirão) que a crença segundo a qual o RPG é nocivo é absolutamente infundada. Na verdade, ela apenas prova o que qualquer pessoa de bom senso já sabe: se você engole o que vê na TV ou lê sem se dar ao mínimo trabalho de pesquisar a fundamentação da coisa vista ou lida, pode estar baseando suas idéias em inverdades.

Quem pesquisar o RPG, seu surgimento e desenvolvimento, verá que ele nada mais é que um jogo de estratégias, como o xadrez, onde, em sua imaginação, os jogadores – como os atores de teatro em uma peça onde o enredo seja desenvolvido tendo como base a improvisação – interpretam outras pessoas. Quem eles serão depende do sistema escolhido pelo grupo e do gosto pessoal de cada um: pode-se ser de Pernalonga a Superman passando pelo Exterminador do Futuro, Conan, o Bárbaro ou Merlin, o mago.

Na maior parte do tempo, a ação acontece apenas dentro da cabeça dos jogadores e do mestre – que é quem fornece o fio do enredo e os cenários através de descrição oral. Dúvidas sobre a capacidade dos personagens interpretados pelos jogadores são resolvidas por jogadas de dados.

Observa-se, então, que os jogadores deverão interagir, conversar, ler, exercitar sua imaginação, raciocínio lógico, habilidade de trabalho em grupo e mais.

Mas como? Então o jogo não foi responsável por incitar aqueles jovens à violência e ao assassínio? Por que então isto vem sendo afirmado tão categoricamente?

Bem, quanto a isso, posso afirmar: é muito mais simples “encontrar” e “apontar” pretensos culpados que sejam alheios e desconhecidos do que refletir sobre a educação e princípios – desde os morais até os éticos – que foram mediados a estes jovens, ou a quem quer que tenha cometido este crime pérfido. Ainda, é sempre bom imaginar que foi algo fora da mente humana – um livro ou um jogo satânico – que tenha levado pessoas à barbárie. Isto, definitivamente, a afasta de todos nós.

É como se esta “distorção da realidade” dissesse que não é o ser humano o responsável pelas barbaridades que pratica, o culpado é “o outro”.

Ainda me lembro do estudante de medicina que repetiu uma cena de um videogame famoso atirando contra pessoas em um cinema. Culpe-se o jogo e não o próprio jovem. É muito mais seguro agir assim do que confrontar o “lobo” mencionado no início, habitante do íntimo da humanidade e que só é domesticado por práticas que exigem atuação responsável de pais e sociedade gerando seres éticos, de bom senso e caráter.

É claro que não se quer dizer que todos os sistemas de RPG tratem de temas acessíveis ou aconselháveis a todos os públicos. Assim como os filmes ou livros, há também sistemas que não são aconselháveis para menores de 18 anos.

Entretanto, há que se considerar que, pessoas de bom senso ao decidirem jogar RPG, ou supervisionar as atividades de seus filhos, selecionarão os sistemas que mais sejam adequados aos seus gostos pessoais ou aos seus padrões éticos – assim como selecionam tudo em suas vidas: desde programas de televisão, jogos de videogame ou computador passando pelos filmes e livros.

E, se, ainda assim, insistir-se em enxergar como problema a questão das referências à magia, a batalhas, a seres mágicos ou divinos – então, que se deixe de ler livros sobre o Rei Arthur, ignore-se as mitologias, deixe-se de assistir aos filmes épicos. Queime-se O Senhor Dos Anéis e esqueça-se de Tolkien. Esqueça-se de Lord Byron, Edgar Allan Poe e finja-se que o gótico nunca existiu. Queime-se Goya e todos os seus quadros e gravuras.

Façamos logo uma fogueira com todos estes livros, peças de teatro, quadros e filmes.

Agora, se você se perguntar o porquê de uma determinada emissora criticar fortemente um jogo em seus telejornais, afirmando que ele incita a violência e sugerindo que ele tem relação com o satanismo, enquanto que em seus programas infantis transmite um desenho como o Caverna do Dragão, cujo nome original Dungeons and Dragons revela sua origem em um certo jogo publicado no Brasil por uma editora concorrente – bem-vindo ao time!

E, se encontrar a resposta, me envie uma mensagem telepática. Na falta de poderes psiônicos, um e-mail serve.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Sobre a vacina contra o HPV e pais (des)protetores

Recentemente, eu estava vendo no jornal uma médica ginecologista falando sobre a vacina contra o HPV, que deve ser ministrada antes do início da vida sexual feminina para evitar, com chances próximas a 90%, os casos de câncer de útero causados pelo HPV (o vírus do Papiloma Humano). Para tanto, recomenda-se a aplicação da vacina em meninas a partir dos nove anos de idade.

Lembro-me claramente de ter pensado: “se eu tivesse uma filha, providenciaria essa tal vacina o mais rápido possível!” Afinal de contas, quase 90%: é praticamente um santo remédio!

O que me fez relembrar o que pensei ao assistir à reportagem foi o comentário de certa conhecida que procurava informações com relação a esta vacina, a qual foi descoberta recente e, talvez por isso, não seja ainda parte do calendário obrigatório. Ela estava chocada ao perceber que a recomendação era que menininhas fossem vacinadas: ela possui três filhas entre 7 e 13 anos – ou seja, duas estão na idade apropriada para a vacinação. E mesmo cogitando (remotamente, por absurdo que possa parecer) vacinar suas filhas, disse que seu marido é quem criaria problemas e quase certamente não permitiria que se vacinassem as meninas. Na mente provinciana deles isto incitaria as meninas ao sexo.

Quem me conhece sabe que, frente a falas como esta, conto até um determinado número, mentalmente, e exibo o meu melhor sorriso. Tudo isto para dar tempo de lembrar a mim mesma de que sou uma pessoa educada e que, por isso, não posso sair por aí dizendo impropérios para todas as asneiras que escuto. Neste caso, contei até uns 2.000.000.

Perguntas que martelavam em minha cabeça enquanto eu sorria: Primeira:como uma mãe (ou pai) ao ter a chance de evitar que sua filha tenha uma doença tão triste e dolorosa responsável por altíssimos índices de mortalidade feminina no Brasil pode dizer o desplante de que não vai fazer isto? Segunda: como uma mulher, mãe de três crianças, que tem seu próprio dinheiro, afinal, ela trabalha, vai se submeter aos caprichos ignorantes do marido quando este, pavorosamente, proíbe as filhas de tomarem uma vacina?

Do fundo do meu coração: eu cheguei a buscar informações mentalmente para ter certeza de que estávamos no século XXI e não no XVI, no Brasil e não no Irã e que eu estava falando com uma pessoa culta e instruída – professora por sinal – e não com algum ignorante que jamais teve acesso a informações e cultura.

Fico pensando se o marido desta minha conhecida possuiria uma bola de cristal que lhe informaria com 100% de certeza que suas meninas não sofrerão de câncer de útero, sendo-lhe assim possível dizer que elas não precisam da picadinha – apenas 100% de certeza quanto ao futuro justificariam a desconsideração da vacina e seus 90% de eficácia. Do contrário, imagino a consciência deste distinto cidadão se qualquer de suas filhas for acometida desta doença cujo tratamento pode envolver intervenções dolorosas no útero e/ou sua retirada. Se uma delas tiver que passar pela quimioterapia tendo que lidar com toda a sua toxicidade e efeitos colaterais.

É claro que, ao dizer que o tratamento é duro, não quero desanimar estas bravas mulheres que lutam contra esta infame doença pelejando por suas vidas, dignidade e feminilidade. Mas, será que, uma delas sequer, afirmaria que perdoaria um pai o qual poderia tê-la poupado do sofrimento de um câncer ao ministrar-lhe uma vacina quando menina e que, não o fez por absoluto preconceito e ignorância? Por medo de que ela iniciasse sua vida sexual antes do “permitido”?

Duvido.

Agora, falemos aqui ao pé do ouvido: será que alguém, em sã consciência, vai realmente dizer que vai tomar conta da vida sexual das filhas e filhos para que eles apenas transem “quando for a hora” e exclusivamente de camisinha? Quem escolheu a hora da sua iniciação sexual foram seus pais? E, me diga com sinceridade, eles tomaram, pelo menos, conhecimento de quando você transou pela primeira vez? E nesta sua primeira vez, foi a primeira vez do seu parceiro(a) também? Foi de camisinha?

A resposta não será a mais comum para quase todas as perguntas, com certeza. E, se for não para pelo menos uma das duas últimas, a pessoa já se iniciou no sexo com grande chance de ter contraído ao menos um dos tipos de HPV dada a sua alta taxa de incidência na população, além da sua facilidade de transmissão.

O que me pergunto é se aquele pai-inquisidor esqueceu-se de que quando iniciou sua vida sexual, foi, muito provavelmente, segundo as estatísticas: ainda adolescente, furtivamente e sem camisinha, com meninas cujos pais não poderiam nem sonhar o que elas estavam fazendo. Ainda, posso supor que foi escondido de seus próprios pais.

Ou será que alguém imagina esta cena como corriqueira: “pai, mãe, eu queria informar a vocês que decidi que já sou um rapaz crescido e, por isso, vou sair por aí e ‘catar’ uma mina”. A mãe, solícita, então, corre ao quarto e entrega-lhe um embrulho e diz: “querido filho, já esperava por sua decisão, e por isso, para que você não esteja desprevenido, comprei-lhe uma caixa de camisinhas” continuando uma exortação maternal sobre a boa hora e lugar para esta nova atividade...

Parece-me que, realmente, as pessoas teimam em esquecer suas próprias experiências imaginando que vão ter um controle ou um poder sobre seus filhos que seus próprios pais não tiveram sobre elas.

Ai, ai...

Em contrapartida, outra colega, desta vez de trabalho, que tem duas filhas e é também professora, estava pesquisando o mesmo assunto e, por acaso começamos a conversar. O pediatra de suas meninas havia sugerido a vacina. Minha colega estava de fato, preocupada, e apesar de considerar que elas estariam distantes de sua iniciação sexual, pensava seriamente se era apropriado vaciná-las imediatamente ou esperar um ou dois anos. Ou seja, de cara, veio a diferença: a questão não era se – e sim quando. E mais, este quando não seria em um futuro distante – seria breve, por precaução. É claro que em nossa conversa debatemos as estatísticas do IBGE que dizem que a vida sexual das brasileiras tem começado cada vez mais cedo: já nos primeiros anos da adolescência. Tenho certeza que esta discussão a fez pensar ainda mais, pessoa esclarecida que ela é.

Esta minha colega ainda, sentiu-se no dever de comentar com suas alunas – ela dá aulas para a faixa etária recomendada para vacinação – sobre a existência da vacina e da necessidade das meninas procurarem informações extras com seus pais, informando-os deste novo achado da medicina, caso eles ainda não soubessem.

Comecei até a pensar que aqueles pais mencionados no início eram os únicos ainda presos na Idade Média.

“Doce ilusão!”, como diria a falecida e ainda querida mãe de uma amiga.

Logo depois, me deparei com a notícia de que, em uma cidade dos Estados Unidos, onde a vacinação foi feita nas escolas, houve pais que reclamaram e chegaram a ir à justiça usando da mesma argumentação ignorante: estão incitando nossas filhinhas ao sexo.

Como se alguém precisasse incitar adolescentes “nada hormonais” ao sexo...

De fato, o que parece ser verdade é que a humanidade saiu da Idade Média, mas a Idade Média não saiu do coração da humanidade – usando frase muito falada em minha família em diversos contextos e com substantivos outros no lugar de humanidade e Idade Média.

Mas, aquele casal do início não me sai da cabeça. Espero sinceramente que, no futuro, suas filhas não venham a culpá-los por dores que poderiam ter sido evitadas.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Comentário: Sobre o RPG e a Ignorância Monumental

A prosa desta semana foi um conto, mas, realmente, passar em branco pela absolvição dos rapazes acusados de assassinar Aline S. em Ouro Preto estava me doendo.

Com a fala da Fátima Bernardes ontem no Jornal Nacional, ficou impossível. Ela disse algo como: absolvidos os rapazes acusados de matar Aline em Ouro Preto em ritual ligado ao jogo RPG (enquanto imagens dos dados e do livro D&D eram veiculadas).

Realmente, estou cansada de ver pessoas denegrindo a imagem de jogadores de RPG e do próprio jogo por ignorância. Para quem não sabe: Eu jogo RPG.

!!!

Como???? Você??? Professora de Inglês de escolas super conceituadas da cidade? Mas, você não é boazinha?? Mas você não é casada e tem um filho?? Nas você não é de boa família?? O quê??? Você ainda é M-E-S-T-R-E????

Sim a todas as perguntas: e ainda canto em uma banda de Heavy Metal e visto camisas de banda. E sim, jogo RPG com meus amigos e sou até Mestre de alguns sistemas. O que a maioria das pessoas não percebe é que isto não significa que eu tenha matado alguém, nem que adore o Diabo e nem que use drogas ilegais, oras.

Também, só por esclarecimento, é bom dizer que não pratico rituais satânicos e nem bebo sangue humano.

Quanto a ser boazinha, meus alunos podem discordar às vezes :p

O que quero dizer é: É FODA SER JULGADO PELA IGNORÂNCIA ALHEIA!

Queria eu que todo mundo fosse esclarecido como meus pais: quando eu comecei a jogar há 15 anos - hoje eu tenho 31 - eles, com medo por causa do que todo mundo andava dizendo, pediram que a gente jogasse na minha casa. Eles queriam ter certeza de que eu não estava em perigo: normnal, são meus pais. E viram: tanto que, depois de algumas sessões, jamais tive problemas para jogar na casa dos meus amigos.

Mas, é impossível como o "emburrecimento" causado pela des-informação da mídia tendenciosa é nocivo: teve até um caso de um pai de alguns de meus alunos - que também é professor - que chegou a aventar a possibilitar de solicitar à direção que o jogo fosse proibido na escola! Isto, depois de proibir os filhos dele de jogar: sem nem se preocupar em se informar a respeito. Ainda lembro de uma frase dele (dita aos meus alunos por ele, que repetiram para mim): "o rpg faz as pessoas perderem a percepção da realidade".

Sinceramente, eu contei até 100 para pensar no que dizer. Ignorância é uma coisa que me dói. Ainda pensei na época: para essa pessoa ir ao teatro ou ao cinema deve ser uma experiência dolorosa e angustiante - ele deve pensar que é tudo verdade, já que pensa que adolescentes ou adultos que participam de um jogo de interpretação de papéis podem ter seu entendimento de mundo bagunçado. Que viagem!

Imagino o que o pobre deve ter pensado de mim quando ficou sabendo da minha biografia: por cantar em uma banda de Metal, deve ter me julgado drogada; ainda mais jogando RPG: acrescente-se ao drogada adoradora do Diabo e possível criminosa deturbadora de mentes adolescentes...

E o pior de tudo: mesmo sabendo que eu era educadora, inclusive na mesma escola, a pessoa jamais se deu ao trabalho de me procurar e pedir um esclarecimento. Era o que eu teria feito se fosse meu filho (que diga-se de passagem, tem nove anos e adora RPG - ele joga no meu grupo). Eu quereria saber de todos os detalhes para depois emitir opinião. Esse negócio de falar sem saber é muito arriscado: corre-se o risco de se passar por ignorante.

Então, se alguém me vir na rua ou souber que dou aula para seus filhos, Relax! Eu não costumo morder (exceto se alguém botar o dedo na minha boca :p)

No mais, este foi apenas um desabafo de quem já não aguenta mais rótulos e ignorância.

(Qualquer dúvida, podem me solicitar minha ficha policial: terei imenso prazer de enviar por e-mail para mostrar que está branquinha como a alma do mais puro santinho do céu. Quanto ao resto, vocês vão ter que acreditar na minha palavra - se é que a palavra de alguém que gosta de Metal e joga RPG tem valor :p).

Conto: O Matador de Mulheres

Cansada do trabalho noturno, enfadonho e extenuante, ela só pensa em descansar. Seu corpo relaxado e totalmente envolto na água morna da banheira está tendo o descanso merecido. Não sei se poderia ser chamado de “descanso dos justos” naquela situação em particular – mulheres como ela jamais seriam chamadas de justas, não é?

Tudo bem que ela não fosse mesmo um modelo de castidade e santidade, mas trabalho é trabalho e o cansaço é o mesmo para qualquer mortal que se dedique a alguma tarefa. Só sei que seu corpo maltratado estava tendo o que merecia: paz e tranqüilidade.

E eu ali, observando... Observando sem ser notada, sentada em uma poltrona rota e desbotada no canto da sala, mas podendo ver claramente pela fresta entreaberta da porta do banheiro. Não era exatamente uma mulher linda ou jovem. Era apenas alguém comum, que certamente passaria despercebido em meio à multidão. Mas eu estava ali e era noite. Noite escura e cheia de presságios. As sombras bruxuleavam ante a luz da lua cheia formando fantasmas esquisitos e às vezes engraçados por todos os cantos.

Só me pergunto se seriam mesmo sombras...

De qualquer forma eu estava ali, sentada e observando. Mas por que, me pergunto: por quê eu e por que ali? Por que naquele cubículo escuro e sombrio abarrotado de móveis de péssimo gosto já envelhecidos – certamente adquiridos em algum brechó – em meio àquela fumaça fedorenta de cigarros baratos que vinha ainda quente de dentro dos cinzeiros lotados espalhados pela minúscula sala? O quê, em nome de Deus eu estava fazendo ali?

Eu estava ali para observar... Observar as sombras da noite que brincavam aos meus pés. Curioso como uma delas ia avolumando-se calmamente enquanto o tic - tac do relógio falava consigo mesmo da parede da cozinha. E a Sombra crescia e tomava preguiçosamente forma de homem: e era de um negro tal que eu não consigo vê-la novamente nem mesmo quando fecho meus olhos na total escuridão da noite. Quem era ela? Sombra maldita vinda das profundezas abissais! O quê quereria aqui em meio a simples mortais?

Ignoro. Apenas sinto.

Eu sinto e é uma dor imensa que me corta o peito como se afiada faca me perfurasse as carnes arrancando-me pungente grito de dor. “O que você quer sombra? Fale comigo!” Mas como resposta obtenho apenas o silêncio sepulcral que permeia a penumbra melancólica e lasciva que envolve a sala.

Propósitos nobres não terá certamente tal espírito maligno que caminha entre as sombras da noite tão silenciosamente quanto um espectro amaldiçoado. Mas o que faço eu ali? Por que tenho que observar os feitos de tal ser?

Tomo uma decisão: abro a boca para emitir um brado de aviso para aquela que inocentemente dorme absolutamente relaxada na banheira. Mas a voz não me sai. O grito pára no meio da garganta como se capturado fosse por redes invisíveis. Apenas me é permitido observar.

O sangue está gelado em minhas veias. A Sombra assume contorno humano e passa a movimentar-se silenciosamente em direção ao banheiro, pé ante pé. Há um brilho em suas mãos – algo reflete a luz pálida e mortiça da lua cheia! Tento novamente gritar ao perceber que aquele era o brilho emitido por enorme lâmina afiada e fria e que aquela sombra não era nada além de um famigerado carrasco em busca de sua nova vítima.

Ao perceber que estou fadada a observar a morte de outro ser, tão humano quanto eu, o desespero me enevoa a visão e a alma. Quero me levantar, mas não consigo: poderosas garras infernais me prendem ao sofá. Por mais que eu me debata tentando soltar meu corpo das mãos ancestrais que me enlaçam o espírito, não consigo! Estou presa! Quero gritar, quero morrer, mas nada me é permitido: posso apenas observar. Mas POR QUÊ?

Tento buscar nos recôndidos de minha mente o motivo de tal tortura malévola e...

-AGORA ME LEMBRO! É claro! Este era apenas um sonho: pesadelo maldito do qual eu não poderia sair sem ver o final. Mas e o último domingo? Nada demais aconteceu! Meras coincidências do destino, claro! O quê mais seriam? Daqui a pouco eu vou acordar, eu sei...

Mas as lembranças daquele dia me são muito marcantes... Seriam mesmo fatos corriqueiros? Chego a duvidar da minha própria mente e de minhas lembranças.

Rememorando aqueles acontecimentos é como se eu estivesse lá novamente, naquele dia já passado, vendo tudo acontecer como em um flashback: quando abri a porta e peguei o jornal logo cedo, nas primeiras horas da manhã, mal pude acreditar na manchete de capa: “EXCLUSIVO: Matador de Mulheres Faz sua Décima Vítima”. Li avidamente a reportagem onde era descrito pelo tablóide como uma fonte na polícia havia deixado vazar que havia um serial-killer em ação matando e dilacerando mulheres que viviam na dita zona boêmia da cidade. E para pavor dos pavores, ele comia seus corações!

O nojo me atacou e a golfada de vômito subiu rasgando minha garganta. Era este o meu pesadelo! Por dez noites eu havia sonhado com isto: uma sombra que se movia esguia e silenciosamente por cômodos nauseabundos até encontrar sua vítima. - E eu ali, tão presente quanto o próprio dilacerador, tendo que observar. - Quando a encontrava, sempre no meio do banho ou jogada sobre a cama em sono profundo, natural ou causado por drogas quaisquer, ele as partia com sua faca. – E eu ali tendo que observar.- Ele enfiava sua lâmina solene e vagarosamente parecendo executar algum sombrio ritual enquanto a vítima se debatia de dor e desespero, mas imobilizada, apenas podia sangrar até a morte. E ele sorria, meu Pai, eu juro por Deus que ele sorria! E eu senti! Em meu pesadelo eu pude sentir! Era como se fôssemos três seres distintos que pelas conspirações do Universo Imperfeito estavam unidos apenas em um: a Vítima, o Assassino e a Testemunha. Éramos três sentimentos absolutos, mas únicos e em comunhão: a dor da Vítima, o prazer do Assassino e o desespero da Testemunha – éramos a pirâmide iníqua, todas as faces do terror em um inigualável e inexplicável ser. E eu sei que cada um de nós sentiu os três sentimentos em seu coração na temida hora fatal.
Quando eu observava a sombra e percebia pela lâmina em punho quais eram suas intenções, meu desespero era indescritível: a vontade de gritar, de me mover de fazer algo, sei lá! E a impotência total quando percebia que poderia apenas observar. Eu não conseguia desviar meus olhos na esperança de que algo pudesse por fim àquela máquina assassina que apenas pensava na carne quente e deliciosa do coração de suas vítimas e no gosto ferruginoso do sangue ainda borbulhante dentro dele.

E era horrível o pavor que me assolava ao ver a vítima ressonar inocentemente em meus sonhos até que o assassino perfurava-lhes as carnes dolentes e enfiava-lhes a faca medonha. Por que neste momento, todo o medo se dissipava e... Eu era o Assassino! Era total o meu prazer sentindo o aço afiadíssimo tocar-lhes a pele lânguida e sensual acariciando-lhes como se o motivo de sua presença ali fosse a vida e não a morte. Até que num movimento rápido e preciso, qual açougueiro abatendo um animal qualquer, eu perfurava-lhes a carne, rasgando a pele e demais tecidos com uma fome de eras passadas. Quando e Vítima ameaçava gritar e começava a se debater – era a Glória e a Redenção: seu sangue e sua dor lavariam os pecados meus e delas. Mas eu, cuidadosamente, havia enfiado a faca entre a quarta e a quinta costela perfurando-lhes em cheio o pulmão. Tentar gritar era impossível: seus órgãos dilacerados jamais emitiriam sequer um ruído. Quando o instrumento havia penetrado até o cabo, senti o gozo do Assassino, que foi o meu gozo, seu prazer indescritível ao tomar o bem mais precioso de sua Vítima: a vida. E o prazer era enorme.

E ali, naquele momento, era como se eu novamente trocasse de corpo e a dor... Ah... Mal posso acreditar em tamanha dor! Eu era a vítima sentindo a arma desconhecida penetrar fria e precisamente meu corpo indefeso e nu. Era insuportável! Ah... O terror, a certeza da morte e a impotência frente a poderoso algoz. Ah... dor, dor enquanto a arma atingia pungente meu centro vital e a vida esvaindo-se junto com a vontade de lutar e então, nada... Nada mais...

Novamente como a Testemunha, tinha que olhar apalermada e impotente enquanto o Assassino cortava as carnes e abria o peito da Vítima freneticamente procurando seu coração encontrando-o ainda quente para devorá-lo logo em seguida. Neste momento, eu mordia minha língua com toda força. A visão era tão repugnante e o sentimento de impotência tão latente que eu tinha, simplesmente tinha que fazer algo para me tirar daquele pesadelo eterno. A dor da mordida sempre funcionava e eu acordava suada e cansada, em minha própria cama e com um gosto inconfundível de sangue entre os dentes.

Era o fim do meu tormento, até a próxima vez. Pesadelo indescritível e aterrorizador.

Pelo menos foi o que pensei até ler aquele bendito jornal.

Na reportagem, bem ali, frente aos meus olhos vi os retratos daquelas que eu apenas havia conhecido em meus sonhos: a ruiva de cabelos longos, a morena gorda e desajeitada, todas. Desmaiei. Era insuportável aquela sensação: eu sentia a loucura ameaçando-me os sentidos.

Quando acordei, estirada no meio da sala qual pano velho e inútil, fiz questão de esquecer. Meras coincidências pensei. Como poderia ser? Impossível! Há, pensa bem? Eu, algum tipo de profiler. Impossível. Apenas pesadelos. Deveria lembrar-me de contá-los ao meu psiquiatra na próxima sessão. E era tudo: vida normal, trabalho, casa, sono e a rotina retomada no dia seguinte. Abençoada rotina que me fazia esquecer meus temores!

Continuei minha vida como pude, e conseguia ignorar as notícias do jornal e não pensar mais no assunto, exceto quando eu sonhava acordada com aquelas mesmas visões.

Mas agora de novo! Mal posso suportar! Eu ali, presa naquela poltrona, sabendo que tudo iria se repetir e eu não poderia fazer NADA além de observar. Amanhã eu sei que não suportaria mais a vida. Sei que não ficaria normal: seria provavelmente internada em um asilo de loucos pelo resto de minha existência, ou me jogaria do alto do maior edifício que encontrasse. Era insuportável saber que alguém morreria ali, na minha frente e eu não poderia sequer chorar.

Novamente tento gritar e nada. Tento me mover e nada. NADA! Apenas posso observar o Assassino, demônio enlouquecido e feroz, que avança qual gato sorrateiro em direção ao pobre ratinho indefeso.

A tensão era palpável: como ela podia não sentir? Era como se o menor movimento de quem quer que fosse pudesse causar um terremoto dentro daquele cubículo.

Mas desta vez, o gato foi surpreendido! Não era um ratinho indefeso que o esperava, mas sim uma leoa parida pronta a defender seu pequeno tesouro! Subitamente, como que avisada por um grito inaudível, a mulher abre os olhos e percebe o Assassino quando ele cruza a soleira da porta. Em um movimento inexplicável, típico daqueles que são obrigados a lutar dia a dia pela própria existência ela lança mão do seu secador e o arremessa com toda a força de seu braço forte contra a Sombra e o acerta em cheio na testa.

O Aniquilador estava perdido... Como poderia ser? Habituado as vítimas dolentes e que não eram capazes de resistir ele ficou perdido por uma fração de segundo. Ele havia vindo ali para ferir e não para ser ferido! Para derramar sangue alheio e não para ter o próprio derramado!

Assolado pela surpresa o assassino foge qual cão covarde, com o rabo entre as pernas segurando a testa e sentindo pungente dor.

Quanto a mim, mal pude conter a felicidade. Alegria, alegria! Eu não teria mais uma alma a me perseguir! Ela vivia! E viveria ainda mais mesmo que para levar uma vida perdida e sem futuro, mas ela vivia! O Assassino foi frustrado! Ah, menos uma agulha a me ferroar a consciência...

Acordei pela manhã cansada e não suficientemente refeita. O sono permeado de pesadelos não me dava o descanso necessário, mas pelo menos desta vez, o final foi feliz! Alegria maior! Graças... Mas esta dor de cabeça está me matando. Também, depois de uma série de noites destas! Fora os dias terríveis de incertezas depois das noites... “Onde estariam minhas aspirinas?” Levo a mão à cabeça em um gesto típico de desconforto e...

Não! Não poderia ser! Eu não acredito! Corri para o banheiro e horrorizada pude contemplar: sobre a minha testa um enorme e protuberante galo circundado por um emaranhado de cabelos emplastados pelo meu próprio sangue iniquamente derramado na noite passada.
 
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