terça-feira, 23 de setembro de 2014

Vou dar aula. Qual guarda-costas vai me acompanhar?



Enquanto professora de sistema municipal e de escolas particulares tenho a oportunidade de acompanhar diferenças e semelhanças entre a comunidade dos dois tipos de educandários.

E, sinceramente. Considerando-se a maior parte dos alunos de um e de outro – eles são bem parecidos, com os mesmos defeitos e qualidades. O vocabulário varia um pouco, a forma de se vestir e portar – mas nada realmente significativo – se há uma coisa que esta experiência mista me mostrou e mostra é que adolescentes são adolescentes.

O problema está mesmo nas exceções. E na forma como cada tipo de escola pode lidar com os tais alunos e suas famílias.

E aí chegamos à primeira diferença gritante: na escola particular, amparados pelo regimento e dentro da lei, direção e coordenação tomam medidas disciplinares compatíveis com o ato do aluno, com a indisciplina. Pais, quando convocados, aparecem na grande maioria das vezes. Normalmente, não é necessário levar casos para o conselho tutelar – mas nas raras vezes em que é, a escola é atendida prontamente.

Não existe a expulsão: mas a última medida disciplinar possível é o convite para a transferência – que é aceito pelos pais, com ou sem reclamação, mas aceito. E eu entendo. Se meu filho chegasse ao ponto de ser convidado a se retirar de uma escola – ou de qualquer outro lugar – eu não o quereria mais ali. Acredito mesmo que as pessoas devem ficar onde são bem-vindas e onde merecem estar. Dependendo do que você fez – de como se comportou – você não merece estar em determinado lugar privando da presença de seus amigos. Sim – a remoção da escola, para mim, sempre foi uma forma severa de punição. E não inaceitável.
Já na escola pública, as pessoas – pais e alunos – sentem-se cheios de direitos: mas sem dever algum. Retiro, claro, de minhas críticas e comentários aqueles que não se encaixam neste perfil: e eles existem. Preocupados como quaisquer pais. Presentes como quaisquer pais. Não me refiro a estes.

O problema é que os demais, os que não são assim, destacam-se muito. São pais que, quando convocados por algo grave que aconteceu na escola, sequer se dão ao trabalho de atender ao telefone, quem dirá de aparecer. E se bobear, ainda vão à secretaria de educação reclamar que seus filhinhos, coitadinhos, estão sendo perseguidos. Não importa que sejam respondões, mal educados, sem limites e sem o menor reconhecimento de autoridade – o que importa é que estão sendo “injustiçados”.

Talvez por isso exista uma grande diferença em relação à disciplina – as escolas particulares onde dou aula são silenciosas durante a aula. É exigido dos alunos que se comportem e fiquem em sala. Na escola pública isto também acontece – pelo menos na maioria das que frequento. Porém, em algumas escolas é interessante perceber como equipe de liderança é tolhida e sente-se inerte nas ações em que pode tomar. E aí as escolas em questão ficam barulhentas, com alunos trançando para lá e para cá em horário de aula e muito mais.

Mas ainda, em algumas escolas mais específicas, a questão da indisciplina é o menor dos problemas. Destaco duas das nove em que dou aula – não mencionarei quais.

Lá o entorno da escola é de periferia paupérrima. São pais que têm que trabalhar o dia todo em empregos mal remunerados – e não possuem creche onde deixar os filhos. Ou seja – no contraturno eles ficam com avós, vizinhos – muitas das vezes, simplesmente na rua.

Estão expostos no dia a dia ao que se chama de “situação de risco”.

E aí, o pior problema que temos é justamente a violência que migra das ruas para dentro da escola. Já relatei aqui as agressões sofridas por duas diretoras de um educandário por parte da mesma mãe de aluna.

Já relatei também como fiquei com o ombro dolorido por entrar no meio de uma briga de dois alunos quase adultos para separá-los. Não me machucaram intencionalmente – e na verdade quando perceberam que eram duas professoras que estavam separando, pararam imediatamente de brigar. (Sei que é perigoso – mas não consigo ver dois alunos se engalfinhando e fingir que não é comigo!)

Mas o que aconteceu há alguns dias superou tudo que eu já havia visto acontecer com gente que eu conheço.

Em uma das escolas que se situa em um dos bairros mais pobres, a qual chamaremos de Escola X, um dos alunos foi atacado por outros dois com facão e pedradas.

Explico: Joãozinho estuda na mesma sala que Pedrinho – ambos com quatorze anos. Pedrinho foi advertido pela diretora para que usasse o uniforme fornecido gratuitamente pelo município. Pedrinho diz que Joãozinho também está sem.

Com a saída da diretora, a briga entre os dois inicia-se e a professora tem que encaminhá-los à direção. Ambos são novamente advertidos, faz-se ata, tomam-se as providências possíveis, dentro do pouco que a escola pode fazer.

No dia seguinte, Joãozinho, que foi à aula, é surpreendido na saída da mesma por Pedrinho, acompanhado de um comparsa, o Zezinho, aluno da escola Y – outra escola de periferia, mas do outro lado da cidade.

Pedrinho está armado com um facão. Zezinho com pedras de alicerce de construção e tijolos. Em um primeiro momento, ele se mantém afastado enquanto seu amigo aproxima-se de Joãozinho e eles discutem.

Pedrinho saca um facão – e não apenas o expõe. Ele o brande e desce golpes na direção de Joãozinho que, habilmente, desvia-se. Eles se afastam e se aproximam diversas vezes. Quando Pedrinho não o consegue acertar, seu comparsa, Zezinho começa a lançar as mencionadas pedras e pedaços de tijolos contra Joãozinho.

Pedaços de coisas voam para todos os lados passando raspando em carros, estourando contra o muro da escola.

A diretora, ao perceber a movimentação e o que estava acontecendo correu em meio às pedras, protegeu Joãozinho com seu próprio corpo contra os objetos que lhe estavam sendo lançados e empurrou-o para dentro da escola e fechou o portão.

Sim – tudo aconteceu na porta do educandário, em plena luz do dia, na saída com a rua cheia de outros alunos que gravaram toda a ação. Foi a uma destas gravações que eu assisti. Aconteceu logo ali, em Congonhas – não no Datena.

Conselho tutelar procurado. O que fazer? – foi a pergunta da escola.

NADA. Não se pode fazer nada contra Pedrinho. É direito do adolescente estar na escola. A escola que se vire com os facões e pedradas.

Onde estão os trabalhos sociais para onde Pedrinho e Zezinho podem ser encaminhados para que sejam corrigidos em sua postura na vida, talvez com a prática de esportes ou o que seja no contraturno da escola? Não há.

Ninguém viu. Ninguém vê. Ninguém pode fazer nada.

Esse dar de ombros me incomoda muito. Ele nos expõe – a todos nós que trabalhamos com educação e temos que fisicamente nos colocar em meio de brigas. Expõe a nossos demais alunos, expõe o patrimônio público e particular.

Expõe a todos nós.

Pedrinho tem direito de estar na escola? Ok. E quanto a todos os outros alunos? Eles não têm direito de estar na escola também? E o direito à segurança? E o direito da diretora de não ter pedras enormes atiradas em sua direção?

Hoje, todos dão de ombros enquanto as escolas ficam responsáveis por resolver sozinhas todos os problemas daqueles que lhe frequentam.

Seus pais estão presos e não há quem o assista? Escola, resolva.

Sua família não vai à escola, nem quando convocada porque você fez algo gravíssimo? Escola, resolva.

Alunos ameaçam professores e sua propriedade? Escola, resolva.

Pais agridem professores ou outros funcionários? Escola, resolva.

Escola: resolva, resolva, resolva. Vire-se. Dê conta.

Agora, eu lhe pergunto: como? Como uma única instituição será capaz de resolver tais problemas sozinha? Colocando o corpo dos funcionários para aparar pedradas?

E no dia seguinte? Como fazer com um aluno capaz de fazer isto? Como mantê-lo junto aos demais? Como, enquanto professora, repreendê-lo por algo que ele faça? Será que não pegará o facão para mim também?

E eis que temos o problema: quando todos dão de ombros e protegem o direito de um em detrimento dos direitos de todos os demais resta apenas a uma única instituição lidar sozinha com suas mazelas que são as mazelas da nossa própria sociedade.

Estou indo dar aulas. Tem guarda-costas para me proteger?

·       *  Desnecessário dizer que todos os nomes foram trocados.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014


por Érica Araújo e Castro


Para bailar la bamba
Para bailar la bamba
Se necessita uma poca de gracia.[1]

Acordo assustada sempre no mesmo momento da música – ao tom estridente com que o cantor Richie Valens introduz sua versão da canção folclórica mexicana. Tenho o sono pesado e para escolher a música que funcionaria como meu despertador, selecionei uma capaz de irritar meu subconsciente de tal maneira que não haveria outra opção que não fosse o despertar.

Não. Eu não detestava esta música. Até achava-a legal antes de começar a ouvi-la todos os dias, às 5h00 da manhã. Ouvira-a da primeira vez ainda adolescente no filme de mesmo nome que contava a vida e breve carreira do cantor que a tornara famosa no mundo todo, em uma antiga Sessão da Tarde.  Rockabilly não é meu estilo de música, mas certamente tem meu respeito – assim como Valens, um de seus intérpretes mais conhecidos.

Então, não. Eu não a destestava.

Hoje mal podia ouvi-la que já sentia uma sensação latente e incômoda de irritação. Bem diziam para jamais colocar nem mesmo sua música predileta como despertador porque logo logo você passaria a odiá-la. La Bamba jamais fora minha música predileta – mas hoje, certamente, constaria entre as que eu mal podia suportar.

E por que não a trocava?

Pelo simples fato de que não queria que meu subconsciente amaldiçoasse outro clássico mundial.

Assim La Bamba seguia como a canção que me despertava todos os dias, no mesmo bat-horário, no mesmo bat-canal.

Mais cinco minutinhos e lá está o agudo de Valens de novo.

Soneca.

Cinco minutos...

Para bailar...

E finalmente levanto-me.

Afff... música chata, meu Deus. – penso sem o menor pudor esquecendo-me do fato de que o que a tornava chata era minha própria escolha de despertador.

Por que não me levanto na primeira vez e estendo a tortura por mais 10, 15 minutos todos os dias? É que levantar da cama não era exatamente o meu forte. Especialmente em dias frios.

Ainda de olhos fechados, tateio pelo chinelo com os pés. Encaixo-os no calçado doméstico sentindo os dedos abrindo caminho por sobre a borracha. Ainda sentada estico-me gostosamente colocando todos os ossos e juntas no lugar. Odeio acordar cedo, mas espreguiçar é um prazer delicioso. E gratuito.

Abandono as cobertas de vez e dirijo-me ao banheiro apertada. Durmo longas horas de sono ininterruptas quase todas as noites – assim, ao acordar em definitivo, a bexiga grita de urgência pelo banheiro.

Junto à música, a sensação de aperto na uretra faz-me despertar.

Na verdade, a música, a vontade de ir ao banheiro e a água fria para escovar os dentes e lavar o rosto. Acabar com meu sono nunca era algo simples e rápido. Não raras vezes eu acordava completamente já com a escova na boca e demorava alguns segundos para perceber que não mais estava na cama, não mais estava no vaso – e que agora escovava os dentes sem que meu cérebro sequer houvesse se dado ao trabalho de despertar.

Não era o caso hoje. E agora, ainda no vaso verifico minhas redes sociais, e-mails. Era-me impossível acordar e não checar imediatamente o que acontecera no mundo enquanto eu estivera dormindo.

Algumas mensagens automáticas e poucas movimentações nas minhas páginas sociais.

Paro com as mãos no lavatório e olho-me no espelho pela primeira vez hoje e o rosto cansado com algumas olheiras grita pelo conforto da cama – mas os ponteiros não esperam pelo sol.

Escovo os dentes, lavo o rosto, tomo café e visto-me sem muitos pensamentos. Atos repetitivos têm essa graça – podem ser mimetizados todos os dias sem grandes preocupações.

A casa está vazia como estivera nos últimos anos. Pais mortos. Família longe.

Era só eu ali. Não reclamava, a verdade é esta. Momentos de solidão são ótimos. E para quando quisesse companhia, sempre haveria os amigos – poucos, mas queridos.

Às 5h30min saio para uma rápida caminhada de 30min – meu único exercício e um hábito matinal cultivado a duras penas. Já não era tão jovem e a atividade física tornara-se uma necessidade, já dizia meu cardiologista. Ou era isto ou os remédios para pressão.

Neste horário o bairro é sempre silencioso. Algumas luzes acesas e pouquíssimas TVs ligadas – um hábito que eu também possuía: simplesmente não conseguia concatenar o sono se o aparelho não estivesse funcionando, mesmo que em baixíssimo volume.

Mas hoje o silêncio estava, de alguma forma, estranho. Acompanhado de uma falta total de movimentação, por isso mexe com meus sentidos. Distraio-me aumentando o volume da música: nada como o bom e velho heavy metal para apagar qualquer silêncio incômodo.

Concentrei-me na música e na corrida deixando qualquer sensação esquisita para trás. Já me era penoso levantar àquela hora – não deixaria meu cérebro preso a divagações sem sentido.

Dou minha última volta ao redor do bairro e entro em casa para o banho necessário. Apronto-me rapidamente – não antes de uma breve olhada nas redes sociais.

6h10min.

Nenhuma movimentação nova.

Penso no silêncio do bairro – e imediatamente afasto este pensamento estranho. Tenho muitas preocupações ao longo do dia para me deixar entreter com suposições fora de lugar sobre uma possível ausência de som e movimento. Meus ouvidos eram o quê agora? Decibelímetros?

Às seis e meia já estou no carro tremendo. A temperatura nessa época do ano era gélida pela manhã, com algum sol no meio da tarde. Se estivéssemos com sorte.

Senão apenas o cappuccino do escritório servia de consolo. Mesmo em dias que se previam longos como hoje.

Acomodo minha pasta e bolsa no banco do carona e aperto o botão que me mostra o mundo liberando a passagem para que meu carro atinja a rua.

O portão se abre como que por milagre. Rio imaginando o que diria alguém caído do século XV em frente à minha casa ao ver que o objeto pesado e firme mexia-se sozinho respondendo ao toque de um botão.
Saio para as ruas vazias. Ao longe um bolo de grama e poeira rola como em um filme de faroeste.

Um senso forte de alerta pressiona meu cérebro. Mais uma vez a ausência de movimentação me atinge – desta vez, não um cutucão suave no cérebro, mas um tapa no meio da cabeça causando uma sensação de não pertencimento.

Neste horário já deveria haver algumas pessoas pelas ruas – empregados domésticos chegando para o serviço, pessoas saindo para as empresas em seus carros ou pacientemente aguardando o ônibus enviado pelos seus respectivos locais de trabalho chegar.

Mas não há ninguém.

Forço-me a pensar que é justamente por isso que, muitas vezes, mesmo odiando acordar cedo, saio neste horário. Ruas tranquilas, sem acúmulo de ônibus ou carros movimentando-se no formigueiro humano.

Por isso gosto de sair assim cedo, mesmo odiando acordar neste horário – repito mecanicamente para mim mesma tentando racionalizar este mundo estático que se apresenta aos meus olhos.

O próximo sinal de tráfego está fechado. Furo-o como consolo. A liberdade das pequenas transgressões possíveis sempre me dava uma suave sensação de prazer.

Todos precisamos de uma pitada de rebeldia – mesmo que seja o ultrapassar o sinal vermelho quando ninguém está vendo.

Lembro da pilha de processos que me espera inerte sobre minha mesa – nada como o pensamento prático para afastar toda e qualquer esquisitice.

Petições a serem feitas aos montes, processos a serem estudados, defesas a serem escritas. Não podia reclamar – enquanto advogada autônoma, que havia iniciado seu próprio escritório há apenas cinco anos, eu contava já com uma clientela sólida. Ainda dividia o imóvel com mais dois advogados – que agora me pagavam uma porcentagem sobre suas causas em troca do meu espaço.

Sim, eu havia começado sozinha, com a cara e com a coragem, depois de uma graduação tardia e depois de apenas três anos de trabalho duro eu havia conseguido comprar o imóvel onde trabalhava – o que me trouxera inegável satisfação. Era como ver meus honorários virarem pedra, tijolo, reboco e tinta bem à minha frente.

Apenas após isto havia aceitado dividir meu espaço com dois outros advogados que já há algum tempo haviam expressado esta vontade.

Algumas reformas internas ainda eram precisas. Eu planejava torná-lo um lugar agradável, com uma divisão entre a sala de reunião e o restante, buscando preservar a privacidade do cliente com seus casos, muitas vezes delicados –, e cada advogado com seu próprio espaço individual. Música ambiente baixinha faria companhia aos que aguardassem atendimento. Uma pequena cozinha – isto tudo em pouco mais de 30m2.  Completamente possível, já dissera o arquiteto que eu contratara para fazer o design.

E justamente pensando em todos os meus planos que precisavam de dinheiro, dinheiro este que apenas entraria de acordo com meu trabalho, dirigia-me cedo para o escritório para escrever laudas e laudas de defesas, proposições, petições e tudo mais que aparecesse. Hoje, em especial, um pouco mais cedo para estudar um processo que me caíra de paraquedas – mas prometia grandes ganhos.

As ruas sozinhas e os poucos carros deixavam-me tranquila, normalmente.

Eu sempre gostara da solidão e dos caminhos abertos, normalmente.

Normalmente.

Mas hoje. Sei lá.

Afff, todo mundo reclama do tráfego. E eu aqui me queixando de espaço livre para dirigir – penso. Não seria culpa minha se as pessoas resolveram aproveitar mais a cama. Estava frio, ora. Faço um esforço para ignorar o que meu sistema límbico teima em me dizer.

É ali que estão concentradas as emoções primordiais – aquelas que cutucam minhas sensações e praticamente gritam em meus ouvidos, pelo lado de dentro, de que há algo terrivelmente errado.

Não. Não é mais um tapa no centro do cérebro. É mais como um murro na boca do estômago.

Respiro novamente concentrando-me na linha reta que deveria seguir para dirigir em segurança.

Depois de alguns minutos, atinjo uma das avenidas de escoamento de tráfego, desta que era uma cidade média no interior de Minas Gerais. Já há 10 minutos eu dirigia e não via carro nem na mesma mão em que eu seguia, nem no sentido contrário.

Porém, há carros parados aqui e ali – como seria de se esperar. Mas nenhum, que não seja o meu, em movimento. Também não há pessoas pelas ruas. Algumas luzes acesas em casas aqui e ali demonstrando uma hipotética presença humana – mas nada mais.

O sol ia crescendo devagar no horizonte.

A sensação de estranhamento penetra no meu cérebro apesar das minhas várias tentativas de ignorá-la. Havia dias mais agitados e dias mais quietos, certo? Os dias frios eram mais quietos e as pessoas normalmente preferiam demorar mais um pouco sob os cobertores, certo?

Era minha suposição para hoje e para o vazio das ruas – não poderia ser verdade, uma vozinha assertiva e arranhada teimava em me dizer – mas era a única que me possibilitava fugir do óbvio.

Um pequeno arrepio sobe minha coluna. Ignoro-o quase que completamente.

Aproveito as ruas livres de presença humana e acelero. Um gato pula do matagal de um lote vago e faz-me frear cantando pneus. Jamais atropelaria um animal de propósito.

Furo todos os sinais. Quatro pistas de lá, quatro pistas de cá. Grande calçadão no meio com uma fila de palmeiras imperiais plantadas nem sei quando. Dou a seta para a esquerda para pegar o retorno. O prédio do meu escritório ficava do lado de lá, sobre uma loja de peças de automóveis que sustentava um edifício de 20 andares.

O relógio de rua piscava intermitentemente duas horas da manhã. É um absurdo o descaso com a coisa pública – não raro o marcador de tempo parava de funcionar, como hoje. Confirmo a hora em meu próprio relógio: 6h45min. Sou tão apegada ao tempo que meu próprio relógio não sai do meu braço nem mesmo na hora do banho. É um recorde – creio jamais ter percorrido a distância entre minha casa e o trabalho tão rapidamente.

Observo com estranheza que o relógio do painel do carro marca também duas horas da manhã. Coincidências que apenas servem para nos ver cismar. – penso empurrado as sensações para o fundo da consciência.

E as ruas permanecem vazias.

O estacionamento privativo ainda está fechado. Às vezes acontece: chego cedo demais e o porteiro ainda não chegara com as chaves, preparando tudo para o dia cheio do imóvel comercial. Era um senhor de meia idade, sempre sorridente e cortês. Seu horário de trabalho era às 6h40min. Ele costumava ser pontual – mas cerca de cinco minutos não caracteriza atraso, de fato, não é mesmo?

Sim, eu sei. Toda esta racionalização era para esquecer que neste horário, próximo ao horário escolar – as crianças entravam às 7h15min – não havia sequer vans pela avenida. Nem coletivos urbanos. Nem outros carros. Nem ninguém.

Paro meu carro em uma das muitas vagas disponíveis na rua assobiando para que o som mantivesse minha sensação de lucidez. Olho em volta, pelos prédios altos e de vidros fechados. As portas de loja todas cerradas.

Depois da chegada do funcionário do condomínio eu guardarei meu carro em minha vaga privativa de proprietária. (Se ele chegar – insistiu minha própria voz arranhada em meu cérebro causando-me um arrepio).

P-r-o-p-r-i-e-t-á-r-i-a – pensei, desconversando em meu próprio monólogo. O sabor desta palavra me era delicioso. O possuir algo comprado com meu próprio trabalho, meu próprio esforço tinha um sabor diferente, sabor de vitória.

Pego a bolsa pesada, a pasta e sigo para a portaria separando minha chave de acesso à mesma – raramente a usava, somente em situações de atraso do Seu Zé, o porteiro, que eu já sabia não estar lá.

Porque hoje TODOS estão atrasados. – a voz sibila frisando na palavra todos para ressaltar a impossibilidade,  insistindo ironicamente nesta ideia fixa e esquisita na qual eu não queria pensar.

Todo o meu corpo gela ao som do pensamento e um arrepio estranho em minha nuca indica o estranhamento. Mas, por medo da loucura, metade de minha consciência insistia em que tudo não passava de uma coincidência.

Se bem que até mesmo o pensamento no atraso geral seria um sinal de insanidade em uma situação em que todas as possíveis conclusões e inferências transam com a lua. Afinal, achar que, simplesmente, sei lá, coincidentemente, como que por milagre, todos ainda estivessem dormindo? Não era um pensamento racional.

E a racionalidade é o fio da lucidez. Talvez por isto neste momento eu não estivesse me sentindo nada racional flertando com possibilidades impossíveis.

A luz controlada por relé se acende com um estalo quando entro e o elevador não demora a abrir-se e conduzir-me ao meu andar. Todo o prédio está silente com suas salas fechadas – escritórios de advogados, contadores, consultórios de dentistas, médicos, salões de cabeleireiro e tudo o mais que se pode imaginar distribuídos em 20 andares de organizada babilônia.

Acendo as luzes de meu escritório e ligo o rádio baixinho. É meu hábito. Gosto de ouvir as notícias da manhã.

Para bailar la bamba
Para bailar la bamba
Se necessita uma poca de gracia


Musiquinha detestável... Aperto o botão de procura xingando mentalmente quem mudara meu rádio de estação.

E no meu canal de notícias o que ainda se ouve é a programação musical automática.

Meu estômago gela novamente com a conhecida sensação da insegurança e eu sinto na boca o gosto amargo da bile. Fecho os olhos e tento me acalmar por alguns segundos.

Se todos estivessem dormindo, o que fazer? E se eu não os conseguisse acordar?

Não, não. Racional. Racional.

Suspiro, relaxo os olhos ainda fechados. Expiro acalmando minhas sensações (ou mentindo para mim mesma sobre isto).

Imagino novos tipos de bombas que fariam com que todos fossem derretidos em seus leitos ou nos locais em que se encontrassem. Totalmente pulverizados, desmantelados e transformados em pó.

Mas não, algo assim não seria, novamente, lógico. Onde eu me encaixaria nesta hipótese – ainda aqui, ainda de pé, ainda carne?

Sento-me aproveitando aqueles que sei serem meus últimos minutos de sanidade.

A esta hora a rua deveria estar barulhenta – era o que me dizia um sussurro sobre o ouvido esquerdo. Mas eu não olharia pela janela agora. Não sem minha dose matinal de cafeína. Não abriria a entrada para a loucura assim com tanta facilidade.

Ignorei meu pensamento sobre o barulho – ou a ausência dele – enquanto passava os dedos sobre minhas pastas de processos e o computador ligava. Fui à pequena cozinha e pus água na máquina de café e preparei-a para que cuspisse o líquido negro e doce que tanto apreciávamos.

7h15min. O mundo lá fora deveria estar movimentado e cheio de carros parando nos semáforos e gente indo para o trabalho. Deveria haver crianças e adolescentes indo para a escola. Deveria haver barulho.

Deveria.

Beberico o líquido quente entre pequenos goles e grandes sopradas saboreando a forma doce com traços de amargor que perfaziam seu rastro em minha garganta.

Sim, eu estava viva. Sim, aquela sensação de estar só era real. Sim, estava tudo estranho.

E, sim. Eu tenho que abrir aquela janela e olhar novamente, agora que, certamente, não faria mais sentido algum que as ruas estivessem vazias.

Não posso adiar mais. Tenho que encarar o que quer que seja.

Sorvo o último gole da xícara e dirijo-me à minha sala. A janela era grande, de metal com uma única peça de vidro inteiriço.

Procrastino minha insanidade por mais um pouco quando a coragem dada pelo café me falha.

Lanço um olhar distante para a pilha de pastas que espera minha atenção e aperto o botão de procura do rádio.

Apenas música automática repetindo-se em todas as estações – máquinas programadas funcionando sozinhas sem o auxílio humano.

Um aperto atinge minha traqueia. Pego o telefone e faço a primeira coisa que me ocorre – ligo para um dos colegas advogados que chega mais cedo.

Sabia que neste horário ele estaria dormindo ainda, e que provavelmente não ficaria muito feliz com minha ligação em um acesso de loucura.

Mas eu precisava saber.

Precisava saber se havia mais algum humano sobre a terra. A sensação de frio no estômago me obrigava a fazer algo – e o mais lógico era ligar para alguém.

Escuto o tom familiar de ligação completa.

Tuuuuuu...

Tuuuuuu...

Atende, merda, atende.

Tuuuuu...

“Você ligou para mim. Não posso atender. Deixe seu recado...” – a voz bem humorada do meu colega de trabalho falou quando a caixa postal do seu telefone foi atingida.

Desligo.

Minhas mãos suam – estou oficialmente em pânico.

Respiro fundo e controlo o tremor.

Calma. Você está bem. Sua saúde tá legal. Você foi dormir ontem super bem. Assistiu à TV. Viu o Faustão. O Fantástico. Estava tudo normal. Calma. Pense.

Tento outro número. Meu outro colega.

Tuuuuu...

Tuuuuu....

Tuuuuu...

Tuuuuu...

Nada. Ele não tem caixa postal ativada em seu número de celular.

Tento mais uma vez.

Tuuuuu...

Tuuuuu...

Tuuuuu...

Tuuuuu...

Nada. Nada. Nada.

Passo a ligar número por número de amigos, familiares, colegas de trabalho, conhecidos.

Nada. Nada. Nada. – o refrão da música da banda Blitz repica em meus ouvidos quando a certeza de que meus passos humanos eram os únicos no agora, no presente, já que os telefones apenas chamam infindavelmente e ninguém atende.

Corro para as redes sociais. Ainda quero manter um único grão de areia de esperança, como o menino que grita o nome da Imperatriz e reconstitui a Fantasia à partir de uma única partícula restante, que não fora devorada pelo Nada.

Nas redes sociais todos conversavam normalmente até determinado horário.

E então, nenhuma atualização desde as duas da manhã.

Lembro-me do relógio da praça parado exatamente no mesmo horário. Na internet tudo também estava silencioso, inerte desde este mesmo horário.

Pela primeira vez desde que fora criada.

Levanto-me ainda de costas para a enorme janela.

Pense. Pense. Você mora em uma cidade com mais de 100.000 habitantes. Não é possível que todos, absolutamente todos tenham, o quê? Morrido?

Não. Eu sabia que não era isto. Se eles tivessem morrido eu veria cadáveres. Pelas ruas, dentro dos carros – mesmo que em número pequeno porque, pelo visto, o que quer que houvesse acontecido, havia acontecido às duas da manhã, hora em que, em plena segunda de madrugada, as ruas estariam quase vazias e poucas pessoas circulavam.

Era algo muito pior.

Pior, sim, porque para tudo que não há explicação conhecida há uma explicação irracional e muito mais extremada criada pela imaginação.

Levanto-me mecanicamente porque agora não me resta nada. Apenas aquela boca escancarada para o mundo que seria meu portal para a insanidade.

Eu sabia que não suportaria a solidão.

Viro-me com cuidado com as pestanas abaixadas protegendo a visão de qualquer ausência. Cubro a distância de três passos que me separa da janela e olho para cima mantendo minha visão nos céus. Desde tempos imemoriais a humanidade procura consolo para suas angústias entre as nuvens, em alguma entidade barbuda e, às vezes, benevolente – Zeus, Odin, Iavé, Alá – seja lá por qual nome atenda.

Porém minha mente lógica dizia que se não havia mais humanidade não haveria mais a quem apelar através dos céus.

Mas não era eu também humana?  - penso levantando a questão. Seria eu humana ainda que não houvesse outros com quem dividir minha humanidade? Ou regrediria a um estado animalesco e primitivo de satisfação dos desejos como o comer, trepar e cagar?

Trepar com quem, cara pálida? – foi a resposta sarcástica e entre risos que recebi de minha própria voz interna a meu cérebro, mas audível ainda em meus ouvidos.

Tudo era incerteza frente à solidão.

Robinson Crusoé, pelo menos, tinha seu Sexta-feira.

E eu? A quem teria? Alguma bola a quem chamar de Wilson? Tornar-me-ia uma fanática ensandecida que defenderia a ilha dos yankees em nome do Imperador-do-sol-nascente, mesmo anos após o fim da Segunda Grande Guerra?

Existiria um eu-humano sozinho? Abandonado pelos seus? Sem juízes ou pares que não fosse a si mesmo? Ou seria a convivência em sociedade que nos fazia quem somos?

Tudo era incerteza.

O que havia de certo ali era que eu olhava para as alturas evitando ao máximo descer minha visão e confrontar-me com... bem... com a ausência... a solidão máxima... apenas eu.

Meu estômago contorce-se e a sensação de pressão na nuca aumenta enquanto solto o trinco da janela vagarosamente e com os olhos ainda mirando o azul suave e inocente daquele início de manhã vou escancarando os vidros transparentes para a verdade.

Recebo o bafo frio e refrescante da manhã diretamente no rosto. Um pombo assustado voa da marquise abaixo – mas sua movimentação não me causa sobressalto. O que me inquieta, neste momento, não é o movimento. É a quietude.

Sem pressa, conduzo meu olhar para baixo. Meu escritório fica no 5º andar. Agarro-me aos resquícios de esperança de ver algum movimento de pessoas e ônibus – mas já sei que não há. É o que me dizem meus sentidos, minha pele arrepiada, meu cérebro confuso, meu sentimento de solidão avassaladora.

Não há.

Movimento algum.

Não há.

Movimento algum.

Não há.

As mesmas ruas – mas vazias. Nem ônibus, nem carros, nem pessoas.

E uma sensação antiga mas repaginada de solidão me atinge o ventre como um murro. A repaginação deve-se à sua grandeza, sua amplificação que veio com a certeza de que eu estava só.

Não apenas no escritório. Não apenas pelas ruas. Não apenas em casa.

Só no escritório e também pelas ruas. Só em casa e também na cidade.

Só na existência.

Em um universo paralelo, talvez, em que todos haviam sido levados – ou pulverizados.

Menos eu.

Um universo desigual onde a palavra Croatoan fizesse algum sentido.

Pela avenida apenas as palmeiras imperiais que balançam suas folhas gigantes no vento frio da manhã.

Debruço-me na janela para ver melhor. A vozinha no meu ouvido esquerdo sobe de tom enquanto procuro por qualquer movimento que seja.

Nada.

Para cima: nada.

Para baixo: nada.

Nos céus: nada.

Nada além das nuvens e folhas que se balançam languidamente ao sabor do vento suave e frio.

Pego minha chave, fecho meu computador, guardo novamente na bolsa e dirijo-me à porta. Saio e tranco o escritório seguindo o velho hábito condicionado, mesmo que em meu cérebro uma vozinha irritante, teimosa e quase humana me diga que não era mais necessário.

Paro na frente do elevador. Subitamente, ele me parece um caixão móvel. E se algo me acontecesse lá dentro e eu ficasse presa?

Não haveria ninguém para me ajudar.

Mas pare. Não é possível que isto realmente tenha acontecido. Você vai chegar na rua e vai ver que as pessoas estavam apenas atrasadas. Ou vai perceber que você entrou em surto desde que acordou e que seu cérebro deu algum “biziu” inexplicável, mas que agora está voltando a funcionar e o resto da humanidade voltará com a sanidade que se foi dele.

Rio tentando manter a calma. Ajeito minha roupa.

Aperto o botão.

 O elevador simplesmente abre a porta. Ele ainda não havia sido convocado a nenhum outro andar desde que eu entrara no prédio.

Ainda do lado de fora, olho-me no espelho. Pareço a mesma pessoa por fora.

Mas meu interior está amalucado. Trêmulo, gelatinoso e ameaçando despedaçar-se. Os anos como advogada ajudaram-me a manter as emoções sob controle, a não transparecer raiva ou medo – ou o que quer que fosse. Mas eu sentia.

Testo o chão do equipamento com a ponta do meu pé direito. Parece firme. Decido entrar e ele recebe meu peso com tranquilidade. Aperto o botão que me levará para a portaria.

Você pressionou o botão “térreo” – diz-me a voz mecânica que apenas faz aumentar meu sentimento de abandono – e é imediatamente seguida pela música ambiente.

Para bailar la bamba
Para bailar la bamba
Se necessita uma poca de gracia

Música irritante do caralho! – sinto os olhos quentes e a garganta apertando quando a porta começa a fechar-se.

Paro-a com a mão. Não suportaria ficar fechada ali dentro sozinha nem pelos segundos que levaria para chegar ao térreo. Quem dirá ouvindo aquela música pavorosa.

Saio e sigo para as escadas.

O salto baixo não me atrapalha. O tremor interno, sim. Desço as escadas como se meus próprios passos estivessem conduzindo-me ao inesperado lá fora. As luzes automáticas vão acendendo-se na medida em que caminho.

Sinto-me movendo por um grande cemitério no meio da noite – e disto eu entendo. A adolescência gótica servira-me para conhecer bem estes lugares tranquilos e silenciosos, especialmente nos períodos noturnos. Não me envergonhava de pular seus muros, a sós ou acompanhada, muitas vezes com alguma bebida alcoólica e textos de Edgard Allan Poe e Álvares de Azevedo para serem lidos em voz alta para ouvidos apodrecidos e surdos.

Não, eu não depredava nada. Ia pelo prazer de estar não apenas só – mas sim em minha própria companhia.

E lá havia uma onda... uma onde de algo inexplicável... uma onda de... de total... isolamento. Sim, esta era a palavra. Isolamento e completa solidão.

Sim, eu reconhecia a sensação. Era a mesma que eu tinha agora.

Total isolamento. Total solidão.

Só que é uma coisa quando buscamos por ela – e outra bem diferente quando a sentimos em um momento inesperado em que, ao contrário do isolamento físico de outros seres humanos, deveríamos estar cercados por eles.

E não estamos.

Evito novas conjecturas. Elas não estão me fazendo bem.

Estou de folga e hoje é domingo. Por isso não há ninguém indo para a escola. Por isso não há gente indo trabalhar. Por isso o prédio comercial está fechado. – digo em voz alta em uma entonação de certeza. Eu passara os anos de exercício da minha profissão convencendo a juízes e jures – por que não haveria de convencer a mim mesma?

Era a única explicação racional, afinal. Hoje era domingo e eu havia, de alguma forma, confundido-me com o calendário, sei lá.

Ignoro solenemente o fato de que eu assistira a programação familiar da TV aberta: cheia de apresentadores insossos e de programas jornalísticos de variedades.

Saio do prédio e sinto o vento. Frio. Nada refrescante. Ele assobia no meu ouvido fazendo-me arrepiar, não por causa da sensação térmica externa e sim por causa da sensação emocional interna.

Paro do lado de cá da avenida onde estacionei meu carro. Olho para cima e para baixo. Nenhum movimento. Nenhum som de presença humana. Nada.

Meu coração parece bater na minha garganta. Sinto a veia da minha têmpora direita pulsando e o gosto azedo de líquido estomacal na boca.

Todas as lojas fechadas. Os poucos carros na rua, parados desde há muito. Os sinais de tráfego abrem e fecham para ninguém. Um cachorro revira o lixo impunemente.

Tomo uma decisão. Entro no meu carro, jogo as bolsas sobre o banco e tateio tremendo pelo buraco da ignição.

Acelero cantando pneus em direção à casa de um amigo, do qual tenho as chaves.

Nunca as usara antes. Mas hoje, era uma emergência. Eu entraria sem tocar a campainha descerrando uma intimidade que não era a minha sem ao menos me anunciar.

Dirijo loucamente pelas ruas fazendo curvas fechadas e pulando sobre os quebra-molas.  Todo o meu modelo popular geme com o esforço a que o estou submetendo. Acostumado a uma direção cautelosa, ele reclama, não sem razão.

Paro à frente da casa. Uma residência normal precisando de uma boa pintura. A campainha me interroga silenciosamente enquanto olho para ela pensando no que seria certo fazer.

Toco-a uma vez e ouço-a ressoar pela casa com o som batendo em paredes que não ocultam ninguém. Aperto as chaves em minhas mãos e sinto a dor que o metal e as saliências causam-me na carne.

Coloco a correta na fechadura do portão e giro. O barulho da trava se desfazendo é agudo e alto. Empurro-o suavemente.

Chamo o nome do meu amigo em voz alta uma vez. Duas vezes.

Apenas o silêncio me responde de volta.

Entro em passos firmes e dirijo-me à porta da cozinha. Sempre entro por ali quando sou convidada, porque entraria por outra porta hoje que não sou?

Abro-a cautelosamente já que a casa está sem vida. Como se sua alma a houvesse abandonado. O cheiro é o mesmo de todos os ambientes inanimados.

Chamo-o novamente e minha voz ecoa pelas paredes retornando aos meus ouvidos em ecos vazios. A casa é um cadáver.

A pia ainda exibe as louças do jantar de um homem solteiro e sozinho. A porta do armário verde e branco está entreaberta deixando ver os mantimentos guardados displicentemente e sem nenhuma ordem.

Sigo pelo corredor e paro em frente à porta do quarto que se situa de frente para o banheiro. Está cerrada.

Escuto o zum zum zum da TV do lado de dentro. Eu sabia que ele tinha a mesma mania que eu: dormir com a claridade difusa por causa de medo do escuro.

Sinto lágrimas de incerteza aquecendo meus olhos pela milésima vez hoje. A garganta tem um nó bem no meio enquanto minha mão estende-se para a maçaneta.

E se ele estivesse morto? E se ele não estivesse lá? E se ninguém estivesse lá?­ – o como ou o porquê não me interessavam neste momento.

Minha angústia residia na possibilidade de estar só. De ter sido esquecida, abandonada. Tanto pelos que me conheciam quanto pelos que sequer sonhavam com minha existência.

Seguro a maçaneta e respiro fundo enquanto a giro suavemente. Ouço o trinco ceder ao toque a as dobradiças rangendo suavemente com a abertura da porta.

A luz entra pelas frestas da persiana iluminando pouco e insuficientemente o ambiente. A TV está ligada em uma tela azul que zumbe suavemente. Reconheço o cobertor sobre a cama – eu mesma o havia emprestado há tempos. Dois chinelos estão na lateral, no chão, como se meu amigo fosse neles encaixar seus pés a qualquer momento.

Mas sobre a cama – ninguém. O colchão ainda guardava o contorno de seu corpo, porém ele não mais se encontrava ali. Desaparecera. Se fora.

Um grito sai de entre meus dentes sem que eu possa controlá-lo. Minhas pernas bambeiam-se e meu corpo cai no chão sem nada que o sustente. Sinto lágrimas misturadas com secreção nasal e saliva escorrendo de meus olhos, nariz e boca.

“Não, não, não, não, não!” – grito até que a garganta doa.

“Não, não, não, não, não!” – mais uma vez e esmurro o chão com meus punhos até que os sinto doendo.

Escuto um suave movimento. Algo se mexe sob as cobertas. Um fio de esperança me alimenta até que vejo o enorme gato alaranjado de meu amigo rastejar-se para fora. Olha-me agressivamente e mia mostrando-me os dentes em uma atitude inesperada.

“Gatinho, gatinho...” – sussurro em meio às lágrimas. Ele me conhece – não deveria me estranhar desta forma. Subitamente, ele desvia de mim seu olhar, pula para o chão e vai para a sala como se eu sequer estivesse ali.

Sinto os tentáculos do sentimento escuro e gosmento de solidão atingindo-me o sistema nervoso central e a loucura parece, finalmente, apoderar-se de minha consciência enquanto bato a cabeça na parede de maneira ritmada, contínua.

Eu já sei o que fazer.

Passo a mão pelo rosto livrando-me das secreções. Ponho-me de pé cheia de certeza. Pego o molho de chaves que havia deixado no chão, que incluía a chave do meu carro. Saio correndo do quarto, passando rapidamente pelo corredor, pela cozinha, pelo quintal.

Entro no meu carro e ligo-o trêmula, mas cheia de convicção.

Acelero mais do que na primeira vez fazendo curvas com a traseira do veículo ameaçando perder o contato com o asfalto. Furo todos os sinais e sigo em direção à estrada tão vazia quanto minha cidade.

Já sei o que fazer.

Já sei o que fazer.

Depois de algumas curvas sei que se aproxima um ponto perigoso, temido por todos os motoristas. A faixa amarela reduz-se indicando o estreitamento de pista – à frente uma ponte que passa no alto, sobre o nada.

Construção humana antiga e firme, resistira ao tempo e a tudo. Alta. Muito alta.

Acelero mais ao ver sua aproximação. Se todos se foram, eu também irei. Em busca do Nada. Em busca da verdade. Em busca do desconhecido.

Vejo quando o carro rompe a borda da construção e atira-se sobre o nada. Respiro fundo sentindo-me em paz.

O rádio liga-se sem explicação e posso ouvir no último segundo antes da queda.

Para bailar la bamba
Para bailar la bamba
Se necessita uma poca de gracia.


Porra de música!




[1] La Bamba – (Canção folclórica mexicana tornada famosa pela interpretação do cantor Richie Valens).
 
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