Enquanto professora de sistema municipal e de escolas particulares tenho
a oportunidade de acompanhar diferenças e semelhanças entre a comunidade dos
dois tipos de educandários.
E, sinceramente. Considerando-se a maior parte dos alunos de um e de
outro – eles são bem parecidos, com os mesmos defeitos e qualidades. O
vocabulário varia um pouco, a forma de se vestir e portar – mas nada realmente
significativo – se há uma coisa que esta experiência mista me mostrou e mostra
é que adolescentes são adolescentes.
O problema está mesmo nas exceções. E na forma como cada tipo de escola
pode lidar com os tais alunos e suas famílias.
E aí chegamos à primeira diferença gritante: na escola particular,
amparados pelo regimento e dentro da lei, direção e coordenação tomam medidas
disciplinares compatíveis com o ato do aluno, com a indisciplina. Pais, quando
convocados, aparecem na grande maioria das vezes. Normalmente, não é necessário
levar casos para o conselho tutelar – mas nas raras vezes em que é, a escola é
atendida prontamente.
Não existe a expulsão: mas a última medida disciplinar possível é o
convite para a transferência – que é aceito pelos pais, com ou sem reclamação,
mas aceito. E eu entendo. Se meu filho chegasse ao ponto de ser convidado a se
retirar de uma escola – ou de qualquer outro lugar – eu não o quereria mais
ali. Acredito mesmo que as pessoas devem ficar onde são bem-vindas e onde
merecem estar. Dependendo do que você fez – de como se comportou – você não
merece estar em determinado lugar privando da presença de seus amigos. Sim – a
remoção da escola, para mim, sempre foi uma forma severa de punição. E não
inaceitável.
Já na escola pública, as pessoas – pais e alunos – sentem-se cheios de
direitos: mas sem dever algum. Retiro, claro, de minhas críticas e comentários
aqueles que não se encaixam neste perfil: e eles existem. Preocupados como
quaisquer pais. Presentes como quaisquer pais. Não me refiro a estes.
O problema é que os demais, os que não são assim, destacam-se muito. São
pais que, quando convocados por algo grave que aconteceu na escola, sequer se
dão ao trabalho de atender ao telefone, quem dirá de aparecer. E se bobear,
ainda vão à secretaria de educação reclamar que seus filhinhos, coitadinhos,
estão sendo perseguidos. Não importa que sejam respondões, mal educados, sem
limites e sem o menor reconhecimento de autoridade – o que importa é que estão
sendo “injustiçados”.
Talvez por isso exista uma grande diferença em relação à disciplina – as
escolas particulares onde dou aula são silenciosas durante a aula. É exigido
dos alunos que se comportem e fiquem em sala. Na escola pública isto também
acontece – pelo menos na maioria das que frequento. Porém, em algumas escolas é
interessante perceber como equipe de liderança é tolhida e sente-se inerte nas
ações em que pode tomar. E aí as escolas em questão ficam barulhentas, com
alunos trançando para lá e para cá em horário de aula e muito mais.
Mas ainda, em algumas escolas mais específicas, a questão da indisciplina
é o menor dos problemas. Destaco duas das nove em que dou aula – não
mencionarei quais.
Lá o entorno da escola é de periferia paupérrima. São pais que têm que
trabalhar o dia todo em empregos mal remunerados – e não possuem creche onde
deixar os filhos. Ou seja – no contraturno eles ficam com avós, vizinhos –
muitas das vezes, simplesmente na rua.
Estão expostos no dia a dia ao que se chama de “situação de risco”.
E aí, o pior problema que temos é justamente a violência que migra das
ruas para dentro da escola. Já relatei aqui as agressões sofridas por duas
diretoras de um educandário por parte da mesma mãe de aluna.
Já relatei também como fiquei com o ombro dolorido por entrar no meio de
uma briga de dois alunos quase adultos para separá-los. Não me machucaram
intencionalmente – e na verdade quando perceberam que eram duas professoras que
estavam separando, pararam imediatamente de brigar. (Sei que é perigoso – mas
não consigo ver dois alunos se engalfinhando e fingir que não é comigo!)
Mas o que aconteceu há alguns dias superou tudo que eu já havia visto
acontecer com gente que eu conheço.
Em uma das escolas que se situa em um dos bairros mais pobres, a qual
chamaremos de Escola X, um dos alunos foi atacado por outros dois com facão e
pedradas.
Explico: Joãozinho estuda na mesma sala que Pedrinho – ambos com
quatorze anos. Pedrinho foi advertido pela diretora para que usasse o uniforme
fornecido gratuitamente pelo município. Pedrinho diz que Joãozinho também está
sem.
Com a saída da diretora, a briga entre os dois inicia-se e a professora
tem que encaminhá-los à direção. Ambos são novamente advertidos, faz-se ata,
tomam-se as providências possíveis, dentro do pouco que a escola pode fazer.
No dia seguinte, Joãozinho, que foi à aula, é surpreendido na saída da
mesma por Pedrinho, acompanhado de um comparsa, o Zezinho, aluno da escola Y –
outra escola de periferia, mas do outro lado da cidade.
Pedrinho está armado com um facão. Zezinho com pedras de alicerce de
construção e tijolos. Em um primeiro momento, ele se mantém afastado enquanto
seu amigo aproxima-se de Joãozinho e eles discutem.
Pedrinho saca um facão – e não apenas o expõe. Ele o brande e desce
golpes na direção de Joãozinho que, habilmente, desvia-se. Eles se afastam e se
aproximam diversas vezes. Quando Pedrinho não o consegue acertar, seu comparsa,
Zezinho começa a lançar as mencionadas pedras e pedaços de tijolos contra
Joãozinho.
Pedaços de coisas voam para todos os lados passando raspando em carros,
estourando contra o muro da escola.
A diretora, ao perceber a movimentação e o que estava acontecendo correu
em meio às pedras, protegeu Joãozinho com seu próprio corpo contra os objetos
que lhe estavam sendo lançados e empurrou-o para dentro da escola e fechou o
portão.
Sim – tudo aconteceu na porta do educandário, em plena luz do dia, na
saída com a rua cheia de outros alunos que gravaram toda a ação. Foi a uma
destas gravações que eu assisti. Aconteceu logo ali, em Congonhas – não no
Datena.
Conselho tutelar procurado. O que fazer? – foi a pergunta da escola.
NADA. Não se pode fazer nada contra Pedrinho. É direito do adolescente
estar na escola. A escola que se vire com os facões e pedradas.
Onde estão os trabalhos sociais para onde Pedrinho e Zezinho podem ser
encaminhados para que sejam corrigidos em sua postura na vida, talvez com a
prática de esportes ou o que seja no contraturno da escola? Não há.
Ninguém viu. Ninguém vê. Ninguém pode fazer nada.
Esse dar de ombros me incomoda muito. Ele nos expõe – a todos nós que
trabalhamos com educação e temos que fisicamente nos colocar em meio de brigas.
Expõe a nossos demais alunos, expõe o patrimônio público e particular.
Expõe a todos nós.
Pedrinho tem direito de estar na escola? Ok. E quanto a todos os outros
alunos? Eles não têm direito de estar na escola também? E o direito à
segurança? E o direito da diretora de não ter pedras enormes atiradas em sua
direção?
Hoje, todos dão de ombros enquanto as escolas ficam responsáveis por
resolver sozinhas todos os problemas daqueles que lhe frequentam.
Seus pais estão presos e não há quem o assista? Escola, resolva.
Sua família não vai à escola, nem quando convocada porque você fez algo
gravíssimo? Escola, resolva.
Alunos ameaçam professores e sua propriedade? Escola, resolva.
Pais agridem professores ou outros funcionários? Escola, resolva.
Escola: resolva, resolva, resolva. Vire-se. Dê conta.
Agora, eu lhe pergunto: como? Como uma única instituição será capaz de
resolver tais problemas sozinha? Colocando o corpo dos funcionários para aparar
pedradas?
E no dia seguinte? Como fazer com um aluno capaz de fazer isto? Como
mantê-lo junto aos demais? Como, enquanto professora, repreendê-lo por algo que
ele faça? Será que não pegará o facão para mim também?
E eis que temos o problema: quando todos dão de ombros e protegem o
direito de um em detrimento dos direitos de todos os demais resta apenas a uma
única instituição lidar sozinha com suas mazelas que são as mazelas da nossa
própria sociedade.
Estou indo dar aulas. Tem guarda-costas para me proteger?
· *
Desnecessário
dizer que todos os nomes foram trocados.
Um comentário:
Triste...
São estes fatos que me fazem refletir muito se realmente vou me capacitar para "isto".
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