segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Sádico, violento e odioso

Publicado na 102ª edição do jornal "Conhece-te a ti mesmo".

Este mês prosearemos sobre uma das obras de Donatien Alphonse François, o Marquês de Sade – ele mesmo: aquele que deu origem ao nome Sadismo que se refere a um transtorno de ordem sexual.

Quando se lê Os 120 dias de Sodoma entende-se exatamente porque o nome de seu autor foi usado para nomear esta perversão: este livro é a epítome do horror sexual.

Na introdução do livro, após uma pequena contextualização histórica onde Sade explicita a situação da França à época de Luis XIV – tesouro e povo exauridos – somos apresentados às protagonistas: figuras poderosas, influentes e muito ricas estando acima de qualquer possibilidade de justiça – o que é primordial tendo em vista os acontecimentos que se desenrolarão ao longo do enredo. São eles: o Duque de Blangis e seu irmão o Bispo de X (que, por questões de verossimilhança tem seu nome ocultado), Durcet e o PRESIDENT Curval.

Estes homens, já de início, nos são mostrados como amorais e como tendo experimentado todos os vícios possíveis a milionários de desejos incomuns. Para que se tenha uma idéia da percepção alterada destes homens, eles combinam casarem-se, cada qual com a filha do outro – cada pai deixando bem claro já ter cometido incesto com suas respectivas filhas. E mais, o desejo explicitamente revelado de cada um deles é: ao casar-se com a filha do amigo e comparsa para fazer dela uma escrava que execute todos os seus desejos e desígnios, já que, como esposas, as moças estariam presas a laços sociais e legais que protegiam maridos em detrimento de seus cônjuges. Ainda, segundo acordo mantido entre eles, cada pai continuaria tendo acesso sexual a sua filha, já que eles fariam um rodízio de esposas.
Além delas, em suas orgias, não havia limite mínimo ou máximo de idade, classe social, sexo ou situação.

Resumidamente, não possuíam preferência, exceto o excesso.

Ainda no começo do livro, cansados de Paris, arquitetam um plano macabro segundo o qual ficariam enclausurados em um castelo com pessoas escolhidas e, em sua maioria, seqüestradas por seus asseclas. Dentre estes, há quatro idosas, oito homens (cuja exigência é que tivessem um membro de tamanho descomunal), quatro prostituas experientes que contariam histórias vividas por elas, oito meninos, oito meninas e as quatro esposas. Contando com os funcionários e as quatro personagens principais, estariam no castelo quarenta e seis pessoas.

É interessante dizer que destes, ao final dos cento e vinte dias de orgia, depravação e torturas, apenas dezesseis, contando com os quatro protagonistas, sobreviveriam para voltar à Paris.

Ao longo destes dias no castelo, Sade expõe toda a sua maestria em dominar a expressão ao descrever em pormenores os corpos e acontecimentos: ora tem-se a imagem angelical – quando, por exemplo, ele descreve Augustine, uma das adolescentes sequestradas – ora tem-se imagens degradadas e que causam asco (por falta de palavra mais forte) – como quando ele descreve Curval e o seu ânus.

Porém, ao chegar aos capítulos finais, Sade muda radicalmente a forma do livro: deixa de descrever em detalhes as situações passando a contar as torturas sob forma de apontamentos. Ao lê-los, tive a impressão que ou ele não conseguiu concluir seu manuscrito da forma como desejaria deixando de expandir as idéias, ou ele mesmo cansou-se de tanta vilania.

Ao longo do livro, o autor promove uma inversão de valores morais, éticos e religiosos, pois, ao passo que descreve os crimes desprezíveis que suas personagens cometem para satisfazer desejos sexuais - incesto, pedofilia, COPOFAGIA, estupro, tortura, assassinato – ele os classifica como “nossos heróis” dando, até mesmo, uma aura de comicidade a determinados eventos chocantes.

Também questiona a aparente inépcia de Deus e da Igreja em cuidar de questões terrenas, já que Constance, uma das esposas e muito temente a Deus, é insistentemente torturada e confrontada com a falta de ação deste Deus a quem ela tanto adora e recorre. Isto é reforçado pela presença do Bispo que promove casamentos homossexuais em uma espécie de pantomima onde os mestres casam-se com meninos travestidos; ou vestidos com roupas femininas casam-se com homens. O próprio Bispo é homossexual: quando passivo gosta de homens másculos e bem dotados. Quando ativo, prefere menininhos – o que nos remete a problemas tão atuais quanto a pedofilia no âmbito da Igreja Católica.

Observa-se ainda que, à maneira medieval, Sade usa seus personagens como referência à classe de pessoas, não indivíduos, sempre grafando com letras maiúsculas suas funções e usando-as mais que os nomes próprios dos mesmos. Este recurso foi largamente utilizado por Gil Vicente em seu teatro, por exemplo.
Sendo assim, têm-se ali os estereótipos do político (Curval), do religioso (Bispo), do bon-vivant (Durcet) e do aristocrata (Duque). Todos corruptos, cruéis e milionários.

Deve-se ainda lembrar que, ao escrever este livro considerado sua obra-prima, Sade estava encarcerado na Bastilha. Ele constituía um embaraço para os altos círculos políticos, religiosos e sociais da França com seus escritos e comportamento devasso. Porém era admirado e lido pelo “povo”, como continua sendo até hoje. Na França, estuda-se Sade no ensino médio.

Estando, pois, na prisão política mais famosa da França, impedido de comunicar-se, restava-lhe o poder de sua pena. Desta forma, ao levar sua imaginação ao auge do horror sexual, era como se ele afirmasse: “Podes encarcerar-me, mas minha mente é livre. Sendo livre, choco-vos o quanto quero.”

Quando da quebra da Bastilha, este manuscrito foi esquecido, tendo sido publicado apenas em 1935.

Devido ao seu conteúdo absolutamente perverso, ele já foi até mesmo difícil de ser encontrado em português. Anos atrás, quando adquiri o meu tive de importá-lo em inglês. Atualmente, é possível encontrar edições com facilidade em nossa língua.
Confesso que o li apenas uma vez, tendo comprado por absoluta curiosidade – sempre gostei de ler Sade me divertindo com sua mente perversa.

Apesar de sua estética e tessitura textual absolutamente talentosa, Os 120 dias de Sodoma possui passagens que pesam, de fato, o coração de alguém fruto da sociedade moderna ocidental – como a descrição pormenorizada dos estupros das crianças e adolescentes, das fantasias escatológicas e/ou assassinas. Ao terminar a leitura do meu exemplar, o escondi no fundo de uma gaveta – a simples visão dele me angustiava, tais os horrores descritos.

Porém, sempre lembro àqueles que o leram e mostram-se chocados, que é importante notar que Sade apenas imaginou as perversões ali descritas. De acordo com o conhecimento que possuímos de sua vida, o sadismo não era levado por ele aos extremos do livro.

Entretanto, o que realmente me atemoriza é o conhecimento de que, ao passo que existiu alguém capaz de imaginar, existirá sempre alguém capaz de executar. Basta ler os noticiários e ver que tenho razão.
O
bviamente, esta não é uma obra que eu recomendo àqueles que possuam entes queridos desaparecidos, mas, certamente, é um livro interessantíssimo para aqueles que se perguntam até onde a mente humana é capaz de chegar.

Mas apenas se aventure se você possuir estômago para tanto.

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