terça-feira, 9 de junho de 2009

Artigo: O Corvo e seu tradutor (in)visível

Coluna Prosa e Literatura, parte integrante do jornal "Conhece-te a Ti Mesmo". Publicada na edição 99/2009

Nesta coluna sobre literatura objetivar-se-á comentar livros, contos, poesias – sejam estes de autores conhecidos do grande público ou não, permeando vários movimentos literários sem restringir-se especificamente a este ou aquele.

O foco, pois, é explicitado no título desta coluna: Prosa e Literatura. Aqui, tratar-se-á a Literatura como se deve e da maneira como ela primeiro surgiu: como uma prosa – que tanto pode ser sinônimo de conversa amigável, ou uma das maneiras de se escrever – aquela diferente da poesia, ou seja, romance, conto ou novela. Afinal, não se deve esquecer que a ficção surgiu da oralidade, primeiramente, até evoluir para a escrita e os livros.

Desta forma, para que nossa prosa inicie-se bem interessante, falaremos sobre Edgar Allan Poe, escritor americano romântico/gótico do século XIX, que certamente produziu muitos assuntos para ótimas conversas. Ele é tido como um dos iniciadores da literatura de investigação e em sua obra ultrarromântica via-se a presença do oculto, do inexplicável. Ele explorou ainda muito bem o que há de pior na alma humana: egoísmo, sadismo, vingança. Para os amantes do gótico como eu, é um autor de cabeceira cuja obra se revisita de tempos em tempos. Uma de suas poesias de minha predileção é The Raven (1845) - no português O Corvo - tema deste artigo.

Poe era estadunidense, sendo assim, para aqueles não falantes da língua inglesa seria impossível deleitarem-se com a leitura de sua obra. É aqui que entra o papel do tradutor, que, quando é realmente bom, aos olhos leigos, passa-se por invisível. Convém ressaltar, entretanto, que, segundo estudiosos, quanto mais “visível” o tradutor – mostrando-se atuante e hábil, melhor será sua tradução já que ele conseguirá transformar o texto original de forma a que este seja lido e compreendido por outra cultura, em outro idioma. Esta naturalidade é o que faz uma boa tradução. (Alvamar Lamparelli, 2007).

Há duas traduções muito conhecidas de The Raven – uma feita por Machado de Assis e outra feita por Fernando Pessoa, ambas intituladas O Corvo.

A poesia trata de um homem atormentado pela perda de sua amada Lenore. Em uma noite, enquanto lê sobre artes esquecidas, um corvo invade sua casa e repete apenas “Nunca Mais” como resposta a todas as indagações feitas a ele por seu interlocutor sobre sua amada morta. O corvo pousa sobre o busto de Pallas (traduzido por Atena), a deusa da sabedoria. Veem-se óbvios elementos góticos no texto como a temática da morte e a alma amargurada pela perda do ser amado e também pela falta de esclarecimento quanto à pós-morte.

Entretanto, apesar da preservação da temática nas traduções mencionadas, ao cotejarem-se as duas com o original vê-se que os resultados finais diferem muito – ao passo que a de Machado é Machadiana; a de Pessoa parece-se mais com o que o autor, no caso Poe, escreveria se pudesse fazê-lo segundo a “última flor do Lácio”, inclusive estruturalmente.

Exemplifica-se: no poema de Poe, em cada verso, veem-se oito pares de sílaba tônica-sílaba átona, o chamado troqueu de oito pés (a métrica da poesia na língua inglesa leva em consideração a tonicidade das sílabas).

Em sua tradução, Machado utilizou-se de octossílabos (versos de oito sílabas poéticas, à maneira da contagem normalmente usada em línguas latinas – nas quais se considera a velocidade da enunciação das sílabas e não sua tonicidade). Já Pessoa compôs seu texto usando os mesmos versos troqueus de Poe. Ainda, a rima na poesia do americano faz-se por combinação ABCBBB – a mesma utilizada pelo escritor português. Já o brasileiro optou por uma combinação AABBCCDEDE – o que indica que ele modificou a disposição dos versos e a quantidade dos mesmos nas estrofes. Em acréscimo, Pessoa procura repetir palavras nos mesmos lugares em que Poe repetiu: enquanto o americano repete “door” o português repete “umbrais”, por exemplo. As aliterações também foram cautelosamente alocadas por Pessoa de forma que ele, de maneira habilidosa, manteve ritmo, métrica e esquema de rimas do poema original conseguindo a almejada naturalidade na língua portuguesa. Estruturalmente, portanto, as duas traduções, apesar da temática, são absolutamente díspares e apenas a de Pessoa mantém a forma desenvolvida por Poe.

Sendo assim, observa-se que, mesmo quando se comparam dois mestres da língua portuguesa, um deles produziu melhor resultado em se tratando da tradução desta poesia específica. Isto demonstra como se deve ser cauteloso ao escolher não apenas o autor de uma obra estrangeira, mas também o tradutor desta obra. A influência do tradutor com sua (in)visibilidade é determinante para o bom resultado.

Assim, se você decidir prosear com Edgar Allan Poe e sua atmosfera gótica, escolha traduções que realmente sejam capazes de apresentá-lo o mundo obscuro, doentio, maquiavélico e complexo deste autor, com todas as suas cores – e prepare-se para mergulhar na penumbra.

(Se desejar algum esclarecimento maior sobre esta prosa, não deixe de me contatar por e-mail.)

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